sábado, 18 de janeiro de 2020

POR LU CANDIDO :: 
Sentou-se no chão diante da mala enorme. Havia dado uma missão a si mesma: desfazer-se de tudo que não era útil ou não fazia sentido. Pra dizer a verdade, estava mais para um dever de casa da terapia. Entre as comorbidades da doença, estava uma incômoda tendência à acumulação e ao colecionismo.

A mala. Sempre havia uma mala na sua vida. Quanto àquela, não sabia o que encontraria. Jogou várias coisas lá dentro quando se mudou e nunca mais mexeu.

Colocou os fones de ouvido, Marisa Monte. “Eu não vou te mandar pro inferno porque eu não quero e porque fica muito longe daqui lalaialaia...” Nenhum significado ou motivo especial, apenas porque já estava tocando. Ajeitou-se em frente à mala. 

Lembrou que não tinha pegado água. Levantou-se e foi até a geladeira. Normal ou saborizada? Depois de dois minutos de indecisão, misturou um pouco de cada no squeeze de um litro e voltou para a sala.

Sentou-se, respirou fundo. Sentiu seu coração acelerando. O que será que tinha na mala? Fazia anos que aquilo estava ali e ela nunca sentiu falta de nada... Abriu o zíper com um puxão rápido. Levantou a tampa e teve vontade de fechar e jogar tudo fora, com mala e tudo.

Papéis, muitos papéis. Apostilas, o simulado da prova da CNH, manuais antigos e até xerox da faculdade. Nem ela entendia por que aquilo estava ali. Se precisasse de algo, estaria na internet. Embaixo dos papéis, estava um Motoradio da década de sessenta que fora da sua avó. Foi bom não ter jogado a mala fora.

Um HD de um computador velho do qual ela nunca recuperou os dados. Uma cortina. Ela detestava cortinas. Gostava da janela do jeito que era, sempre aberta, em toda a extensão da parede, entrando muita luz e muito ar. Comprovantes de pagamento de dez anos atrás. E uma caixa de sapato.

Não se lembrava daquela caixa. Abriu e foi pegando os objetos, um a um, lembrando-se de cada situação às quais eles remetiam. Aquilo tinha um potencial enorme para ser jogado fora, mas ela não conseguia. Não podia, era como se as coisas estivessem presas às suas mãos por um ímã.

O mais louco é que ela não tinha a menor dúvida de que aquela história estava superada há anos. Mas ali estavam anos da sua vida, espalhados em cartões, fotografias e presentes do ex. E a aliança de papel de chocolate. Começou a chorar. Aquilo era ridículo. Tentava pensar nele, mas tudo que sentia era saudade de outro.

Levantou, encheu um copo de gin e voltou para o chão. O infeliz era criativo. Sorriu vendo a sequência de fotos dos dois em vários lugares históricos pelo mundo. Que aniversário foi aquele? 2011? Não lembrava. A agenda que ele trocou a capa por outra com fotos deles. Os cartões das tantas flores que mandou.

Foi interrompida pelo barulho de alguma coisa caindo. Era um livrinho que ganhara das amigas no aniversário de 2010. Ela se encostara sem querer na estante e ele caiu. Não mexia nele há anos. Não tem como descrevê-lo. Qualquer tentativa em palavras será um fracasso. Era a história ilustrada dela com as amigas desde que chegara a São Paulo.

Começou a folhear e então chorou pra valer. Chorou muito, de soluçar. Cada página virada era um pedaço dela. A sua chegada, as manifestações, as baladas, os almoços prolongados pelas conversas. Teve também aquela crise horrível, em que ela esteve a um passo de desistir de tudo. Elas estavam lá segurando sua mão. Tudo isso naquele livrinho que terminava com “To be continued...”

E continuou. Havia dois dias, as três se encontraram na casa dela para jogar conversa fora, comer petiscos, dar risadas.


Então ela entendeu. Não era sobre ele nem sobre o relacionamento dos dois. Era sobre a vida dela. Por isso as lembranças dele não podiam ficar separadas numa caixa de sapato.

Não tinha que jogar fora os presentes do ex. Nem devia. Eles contavam a sua história. Não podia fazer de conta que não existiram, porque apagar o que que vinha dele significaria apagar metade da sua vida naquele período. E, francamente, por que seu cérebro acelerado estava pensando isso?

Não podia e não devia apagar as vezes que riu e chorou, as viagens e todo o resto. Lembrou-se de como se arrependeu por ter jogado as cartas e presentes de seu primeiro namorado na churrasqueira e tacado fogo. O fato de terem voltado uns meses depois talvez tenha influenciado, mas hoje ela gostaria de ver e ler aquelas coisas, resgatar uma parte sua que está morrendo na memória.

Tudo o que tinha a fazer era tirar os presentes daquela caixa de sapato e guardá-los com as outras lembranças, pois era isso que eram: lembranças. Importantes, é verdade, mas só lembranças. E por mais importantes que fossem, não contavam nem um quinto do que estava naquele livrinho.

Percebeu também que não guardou nada dos relacionamentos que teve depois dele. Passou a se desfazer de tudo. Talvez tenha sido seu inconsciente, mas agora estava na hora de parar com isso e registrar as novas memórias, deixar que sua história seja contada.

Fechou a mala com o que tinha sobrado. Ainda tinha muita coisa para jogar fora, continuaria depois. Olhou para o copo de gin que serviu e esqueceu e sentiu enjoo só de pensar em beber. Tomou o resto da água que estava no squeeze enquanto pensava. Naquele momento, tomou uma decisão: a próxima mala seria a que a levaria para um lugar distante.




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