sábado, 13 de setembro de 2025

POR LU CANDIDO :: 

Setembro Amarelo: urgência de olhar além da cor das campanhas superficiais que não enfrentam as questões sociais do sofrimento

Foto: Freepik

Todo mês de setembro, as cidades se pintam de amarelo, e postagens se multiplicam nas redes sociais sobre prevenção do suicídio. Mas é preciso ir além das hashtags e lembrar que o suicídio não é apenas um drama individual: ele é um fenômeno social, que cresce em um contexto de precarização do trabalho, desigualdade e falta de políticas públicas de saúde mental.

O Setembro Amarelo nasceu oficialmente no Brasil, em 2014, quando a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) organizaram uma campanha de conscientização para prevenção do suicídio. O Centro de Valorização da Vida (CVV) se uniu nessa parceria e é considerado, até hoje, um instrumento central de apoio e escuta.

A base simbólica do Setembro Amarelo é o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, marcado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 10 de setembro.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 700 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos, uma a cada 40 segundos. No Brasil, os números vêm aumentando: de acordo com o Ministério da Saúde, em 2022 foram registrados 16 mil casos, o maior número da série histórica, com crescimento principalmente entre jovens de 15 a 29 anos.

Esses dados não podem ser analisados de forma isolada. O suicídio se conecta a um cenário mais amplo: jornadas exaustivas, salários insuficientes, insegurança habitacional, violência e uma sociedade que normaliza o sofrimento como preço da produtividade.


Por que não participamos mais
No início, nós aqui do QSPMSP apoiávamos de forma ativa o Setembro Amarelo. Era um momento importante para focar no problema e falar abertamente sobre ele, quebrando silêncios e tabus. Com o tempo, no entanto, vieram à tona as camadas que ferem e magoam quem já sofreu com o suicídio. Como eu, que já tentei tirar minha vida. Como minha família, que convive com alguém que já tentou suicídio.

Nos últimos anos, o capitalismo se apropriou do Setembro Amarelo, justamente quando amplia a pressão sobre os trabalhadores. A apropriação se intensificou a partir de 2019-2020, tendo a pandemia como pano de fundo, mas, na verdade, uma série de casos de suicídio relacionados ao trabalho veio à tona, e, como sabe fazer bem, a burguesia transformou isso em oportunidade.

A Carol Candido escreveu um excelente artigo sobre isso na seção A Loucura do Trabalho, com o título muito apropriado “Estamos morrendo de trabalhar” (leia aqui). No texto, ela traz um caso brasileiro. Em agosto de 2022, um estagiário de um grande escritório jurídico de São Paulo tentou tirar a própria vida na própria empresa. “Pelos relatos expostos, o jovem de 19 anos estaria sofrendo forte pressão para cumprir um prazo, o que o levou a acumular, nos três dias anteriores, uma jornada de trabalho muito acima das seis horas regimentais”, diz o texto.

O artigo também alerta: “Em pesquisa realizada no Brasil em 2019 pelo CCVISAT (Centro Colaborador da Vigilância dos Agravos à Saúde do Trabalhador), foi constatado que a mortalidade por suicídio vem crescendo em todos os grupos ocupacionais, com maior elevação na indústria (+30%) e na agropecuária (+23%)”.

Empiricamente, percebemos que campanhas chamativas, posts bonitos, cartazes, ações corporativas bem iluminadas mascaram algo muito mais profundo: o abandono estrutural, o silêncio do resto do ano e o sentimento de que ninguém vê, ninguém cuida, em especial quando a dor é antiga ou complicada demais para um “você precisa procurar ajuda”.

Mas nossas histórias não se apagam, não são cicatrizes que desaparecem com laços e banners amarelos. Ver as mesmas empresas que impõem metas absurdas, relações de trabalho desumanas e abusivas, assédio moral, esgotamento emocional, apropriarem-se da campanha trouxe um desconforto profundo e nos fez romper com ela.

Isso não significa que estejamos ignorando as questões particulares que circundam o suicídio. Tampouco vamos criticar os indivíduos que, de forma honesta, seguem apoiando a campanha: queremos que sigam se preocupando com o tema. Estamos apenas mostrando que existem outras formas de se fazer isso.

Continuamos falando sobre preconceito e estigma, doenças e tratamentos individuais, a importância da psicoeducação e da fala. Mas não precisamos marcar uma data para isso. A prevenção, enquanto campanha social, tem que ser ação concreta, política de investimento público, suporte real.

O problema é que, a cada setembro, reforça-se a ideia de pedir ajuda sem enfrentar o fato de que a rede pública de saúde mental (Caps, ambulatórios, equipes de atenção básica) sofre cortes constantes e não consegue atender à demanda. Em 2023, o Conselho Nacional de Saúde denunciou que menos de 40% dos municípios brasileiros contam com serviços especializados de atenção psicossocial. Falar de prevenção sem garantir acesso real ao cuidado é transformar uma questão de vida ou morte em marketing.

Adoecimento mental no trabalho
Em 2024, o Brasil registrou cerca de 470 mil afastamentos de trabalhadores formais por transtornos como depressão e ansiedade. Este número representa uma epidemia. Segundo a ONU Brasil, os afastamentos motivados por saúde mental cresceram 68% em relação ao ano anterior. Os transtornos mentais relacionados ao trabalho já são a terceira maior causa de afastamento do trabalho no Brasil.

A síndrome de burnout, reconhecida em nível mundial como uma doença ocupacional, também aumentou. Os processos trabalhistas pela síndrome subiram 14,5% nos primeiros quatro meses de 2025. Pesquisa da Fiocruz (2023) mostra que mais de 30% dos trabalhadores brasileiros relatam sintomas de depressão ou ansiedade ligados ao ambiente de trabalho. Outro dado alarmante: a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que o Brasil está entre os países com mais casos de burnout, reconhecido pela OMS como doença ocupacional desde 2022.

Menos da metade dos municípios brasileiros (46%) possuem políticas ou programas de atendimento a pessoas com transtornos mentais segundo dados da SmartLab de Trabalho Decente 2025, uma inciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1) está sendo apresentada como uma promessa normativa. Ela foi atualizada para exigir que empresas identifiquem e manejem fatores de risco psicossociais no trabalho.

No entanto, na prática, há muitos obstáculos e desconfiança em torno dela. Os problemas psicossociais são tratados com muita subjetividade, e fica a cargo das empresas definir, fiscalizar, proteger. Entre os trabalhadores, fica o medo de expor sua situação e ser retaliado. Ou seja, a norma meio que coloca o vampiro para cuidar do banco de sangue.

Ansiedade climática
Em nenhuma outra época o caráter destrutivo do capitalismo esteve tão explícito. Na atual etapa do capitalismo imperialista, o risco de destruição do planeta e da humanidade como a conhecemos é muito concreto. Estudos mostram que uma parcela muito grande da população adulta brasileira está preocupada com as mudanças climáticas: sentimentos como medo, impotência, tristeza e desesperança são comuns.

As mudanças climáticas agravam desigualdades e fragilizam condições de vida. Secas, enchentes, ondas de calor, prejuízos à agricultura, perdas materiais: tudo isso ativa sofrimento, insegurança existencial, ansiedade, luto climático (perdas ambientais, perdas de modos de vida) que muitas vezes não é reconhecido nem tratado.

No Brasil, em particular, dados indicam que eventos climáticos extremos (chuvas, secas, calor extremo), ao aumentar, vêm impactando não só a saúde física, mas a psicológica, principalmente em populações vulneráveis.

Esta é uma questão que ainda vem sendo estudada, mas é preciso, desde já, reconhecer o sofrimento coletivo e ambiental, debater como a crise climática, a degradação ambiental, a insegurança existencial e a perda de modos de vida contribuem para adoecer corpos e mentes. As políticas de saúde mental precisam incluir trauma ambiental e ansiedade climática.

Abandono e silêncio
É verdade que o capitalismo não criou a maioria das doenças mentais que conhecemos – muitas estão aí desde a antiguidade (como o transtorno bipolar, por exemplo). Mas é verdade também que, nos últimos anos, surgiram síndromes que não existiam. É verdade, ainda, que o capitalismo tem o potencial imenso – e atua para isso – de desencadear e piorar as doenças existentes. Tratar de suicídio apenas como “problema individual” ou “psiquiátrico” é insuficiente. Serve para maquiar fatores sociais, como desemprego, precarização, desigualdade, isolamento, crise habitacional, insegurança climática.

Enquanto isso, a psicoeducação, uma arma tão potente a favor da saúde mental, é deixada de lado. Não interessa às empresas acabar com o estigma e o preconceito. Pelo contrário, quanto mais persistirem, mais os trabalhadores se colocarão uns contra os outros, terão medo de expor suas doenças para não serem tratados como loucos e incapazes e não serem demitidos.

No fim, as campanhas corporativas acabam invisibilizando o próprio indivíduo, que, para o capital, não passa de mais um parafuso no mecanismo do lucro. Jovens e adultos com frequência sentem que seu sofrimento não vale para o discurso público, porque não têm acesso, porque não se encaixam no modelo oficial, porque não é bonito de aparecer ou porque são julgados.

Setembro Amarelo Co.
As empresas que participam do Setembro Amarelo fazem isso de maneira visual basicamente: posts bonitos de conscientização, camisas amarelas, apoio emocional on-line. Algumas fazem uma palestra. As condições de trabalho, no entanto, permanecem. Continuam as metas opressoras, as jornadas extenuantes, a fragilidade ou até a falta de direitos trabalhistas e, evidentemente, condições de saúde mental infernais.

Esse tipo de apropriação gera efeito contrário: mostra para quem sofre que “falamos disso uma vez por ano, e nada muda”, reforçando o abandono, a frustração, o sentimento de que “ninguém me vê”. Quem já tentou suicídio, quem vive com depressão grave, ansiedade persistente, luto, adoecimento crônico não se reconhece nesse discurso genérico e percebe que a campanha não é feita para pessoas como elas.

Aqui vale abrirmos um parênteses. Nas redes sociais, falar sobre suicídio é proibido. A campanha existe, mas o algoritmo não deixa você escrever a palavra que importa. Então surgem aquelas grafias ridículas, com números e letras, para tentar escapar e ter seu conteúdo entregue. Enquanto a rede silencia a palavra, o sofrimento segue sem ser visto.

O que precisa de verdade
Discursos vazios e laços amarelos não substituem políticas públicas e investimento contínuos. Financiamento real e permanente de saúde mental não pode ser só em campanha. É preciso expandir Caps, ambulatórios, atenção básica, remédios, psicólogos, psiquiatras, tornar atendimento psicológico acessível tanto do ponto de vista geográfico quanto econômico.

Com relação às empresas, é preciso que haja leis que protejam os trabalhadores e não que retirem seus direitos. Para ser coerente com o discurso de suposta prevenção do suicídio, o governo deveria começar revogando as reformas trabalhista e da Previdência, bem como outras leis complementares que permitem às empresas fazerem o que bem entendem.

Em vez disso, é preciso obrigá-las a seguir uma regulação do trabalho favorável à saúde mental e proporcionar condições dignas, identificando fatores de risco psicossociais nas empresas, reduzindo a jornada abusiva (começando pelo fim da escala 6x1). Enfim, garantir ambiente de trabalho que respeite saúde mental: sem assédio, sem metas irrealistas, sem expectativas impossíveis. Bem… sabemos que o capitalismo não dá almoço de graça. Vamos ter que lutar.

Conclusão
O suicídio não vem só da ausência de saúde mental. A ausência de saúde mental e, por consequência, o suicídio, também podem vir da ausência de condições dignas de vida. Salário baixo, má alimentação, exaustão, transporte lotado, privação de sono, falta de moradia, assédio moral, machismo, racismo lgbtifobia… Será que os patrões estão dispostos a debater sobre esses e outros temas?

Estamos livres. Livres para falar, para gritar. Mas quando outubro chegar, fique quieto, cumpra suas metas, não seja louco.

O Setembro Amarelo perdeu seu valor. Não queremos luz decorativa. Queremos luz que ilumine o que dói, o que mata, o que exige mudança. Porque prevenir suicídio não é só falar sobre o tema (é também, e isso importa muito). É ouvir ativamente quem tenta, quem sofreu, quem vive com depressão e doenças mentais, quem já esteve no precipício. É garantir que suas vozes – e não as corporativas – façam parte das campanhas todo dia, não só em discursos de conscientização. É construir uma sociedade que reduza o desespero, que cuide, que acolha.

Prevenir o suicídio exige mais que laços amarelos: exige uma sociedade que não adoeça sua população. Significa compreender que cuidar da vida é também lutar por direitos e por um mundo são, sem capitalismo.

Não sejamos os que apenas postam, mas os que lutam e transformam. O ano inteiro.





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