sábado, 2 de novembro de 2019



POR LU CANDIDO :: 
Eu tinha uns quatro anos. Passava os dias na casa da minha avó enquanto meus pais trabalhavam. Havia um quintal grande com um pomar onde meus primos, as crianças da vizinhança e eu brincávamos. Mas quando chegava outubro, eu esquecia tudo isso.

Foto: Bilhete que escrevi para a minha mãe em 1984, provavelmente em outubro ou novembro.

Aguardava aquele mês ansiosa para pular para o outro lado da cerca. Era a época do ano que eu passava com a Vizinha – esse era o nome que eu dei a ela. Era uma senhora, que não era tão senhora na época, que fazia coroas de flores artificiais para o dia de finados.

Minha mãe explicava que em novembro, mês que eu nasci, tinha um dia em homenagem aos mortos, às pessoas que já se foram. Os que estavam vivos iam ao cemitério, onde elas descansavam, levavam flores e rezavam.

Quando sentia o cheiro da parafina derretendo, largava qualquer brincadeira e saía correndo. Eu dizia que tinha que ir trabalhar. Minha avó e a Vizinha se encontravam na cerca e me atravessavam para o outro lado.

Ficava maravilhada no meio daquelas folhas de carvalho tingidas de um verde escuro e das flores de papel azul, cor-de-rosa, violeta. Era lindo quando as coroas começavam a ficar prontas. A Vizinha as pendurava no teto, que logo ficava coberto e só víamos o verde das folhas de carvalho.

Eu sentava ao lado da Vizinha. Ela me dava algumas hastes e me ensinava a fazer o miolo. Eram as que tinham se danificado e não poderiam ser usadas, soube depois. É evidente que eu não ajudava em nada, mas acreditava que estava fazendo flores para as pessoas que estavam sozinhas no cemitério. Assim foi durante anos.

A Vizinha era casada com o Vizinho. Ele tinha uma perna mecânica. Às vezes, eu pedia para ver a perna. Então, a vizinha me chamava quando a perna estava escorada na parede, quando ele estava no banho ou dormindo. Eu observava a perna com curiosidade e depois ia brincar com um cesto de bugigangas que ela guardava para mim a meu pedido.

Um dia, o Vizinho morreu. Eu tinha oito anos. Acompanhei toda a movimentação. Ele foi velado em casa. As crianças foram levadas para a nossa casa e nossa única tarefa era brincar, mas eu estava preocupada com uma coisa: quem faria a coroa de flores do Vizinho?

A certa altura, puxei minha mãe e disse: “Mãe, posso ver o Vizinho?” Acho que ela não esperava por isso, mas deixou que eu fosse após me dar algumas instruções.

Foi a primeira pessoa morta que vi. Segundo as regras, eu não podia ficar parada muito tempo na beira do caixão, porque era falta de educação e outras pessoas também queriam ver o morto. Ninguém disse nada sobre tocar, de modo que dei uma cutucada para ver como fica a carne da gente depois que morre. Eu já tinha oito anos e sabia que o Vizinho não ia ao cemitério para descansar.

A Vizinha estava sentada numa poltrona num canto da sala. Eu queria abraçá-la, mas a pessoa adulta responsável por mim me arrastou de volta para casa, pois a Vizinha estava desmaiando. Lamentei não ter abraçado a Vizinha nem ter feito a coroa.

Um ano depois, eu viveria meu próprio luto.

*    *    *

Na minha casa, a morte nunca foi um tabu. Minha mãe, em particular, nunca a escondeu de mim e da minha irmã. O que mudava era a forma como se falava sobre isso aos cinco e aos oito anos.

Quando minha avó morreu – a outra, não a vizinha da Vizinha –, eu tinha apenas nove anos. Talvez não seja a melhor idade para se passar por um luto, mas a morte não (quase nunca) é programável. Eu sofri muito, mas não achei errado. Naquele momento, eu entendi que perderia pessoas ao longo da vida – eu ia sofrer, foi isso que aprendi. O tempo deu razão à menina de nove anos.

A morte me ensinou outra coisa também. Eu me senti muito culpada, porque tinha prometido que passaria as férias com ela, mas minha avó morreu algumas semanas antes. A culpa não era minha, mas quando se sabe que existe a morte na outra ponta de nossas vidas, damos mais atenção ao que realmente importa.

Minha mãe me deu o privilégio de saber que a vida humana tem início, meio e fim. Ver a morte como algo contra o que não podemos lutar, algo da natureza humana, ajuda a viver o luto de forma plena e a aceitá-la. Porém é o que aprendemos para a vida que importa. Pensar na morte não é só pensar em perdas, é principalmente pensar em como viver.

Quando aceitamos a morte, começamos a viver de verdade.




2 comentários: