terça-feira, 10 de março de 2020

POR LU CANDIDO :: 
Sabe quando você lembra de alguém e pensa: “Que saudade, amanhã vou ligar.” Não cometa este erro. Ligue hoje. Eu disse “amanhã vou ligar” e não houve amanhã. Agora está doendo demais.

Ele foi uma das pessoas mais alegres que já conheci. O Papa era dessas pessoas que chegam na vida da gente e parece que sempre estiveram ali. Ele foi um grande sambista, advogado, jurista, mas, acima de tudo, um grande amigo.

Lembro-me dele me arrastando para o desfile da escola de samba. Eu nunca tinha desfilado, estava com medo. Não sabia nem cantar o samba. Ele sentou-se ao meu lado no ônibus que levava a galera para a avenida e, em menos de meia hora, eu estava cantando. “Deixa a água molhar, a cultura rolar / É São Vicente / Basta um só olhar para se apaixonar / Ao ver o sol poente...”

Houve uma vez em que ficamos conversando até as cinco da manhã. Eu estava num momento difícil, sentindo-me incompetente, infeliz com a minha profissão, sem rumo. Ele me pegou pela mão e fez com que eu elaborasse dois projetos realizáveis numa mesa de boteco do Bixiga. Ele não só apostou que eu era capaz de escrever a biografia de uma figura ilustre do Bixiga, entre outras coisas, como entrou comigo nessa viagem.

Eu estava esperando uma ligação dele para marcar a primeira reunião com a figura ilustre. Ele não ligou no dia combinado. Achei estranho, mas não quis incomodar. No segundo dia, sua irmã ligou: ele tivera um AVC.

Lembro-me daquele momento com nitidez. Eu estava andando com um amigo na rua. Fiz um sinal para ele seguir sem mim e fiquei ali parada no meio da rua. Ele sobreviveu com muitas limitações. Foi morar com parentes, numa cidade distante, para a reabilitação.

Em seguida, eu também fiquei doente e deixei de acompanhá-lo por um tempo, o tempo em que não tive contato com o mundo exterior. Nossos projetos, é evidente, ficaram suspensos. Então, nos últimos tempos, já recuperada, pensava muito nele, mas adiei o contato, a visita.

Só que a morte não espera. Ainda não sei a causa exata e achei que não convinha perguntar no funeral. Ele morreu dormindo.

Nunca passou pela minha cabeça que ele não voltaria. Nunca passou pela cabeça de ninguém. Tinha uma viagem programada para vê-lo para daqui alguns dias com todo o Madeira de Lei, o grupo de samba, e eu iria junto.

Quem dera pudéssemos controlar o tempo. Eu voltaria por uma horinha apenas. Pegaria o telefone e ligaria para ele. Provavelmente gravaria uma mensagem, na verdade, porque ele não estava falando. Iria vê-lo onde quer que fosse. Diria o quanto ele foi importante para mim em tão pouco tempo. Abraçaria e diria que estava esperando pela sua volta, eu e todo o Bixiga.

Eu, que gosto de dizer que lido bem com a morte, descobri que tenho muito a aprender ainda. Se pensar na morte é pensar na vida, e ainda acho que é, não pensei na morte no momento em que mais precisava. Desperdicei o momento de vida que ali havia.

Agora dói. Não é só a dor da falta, do luto. Essa é forte, é verdade, mas todos partiremos um dia. A dor pior é não poder voltar no tempo, é a dor do arrependimento, aquela pela qual só eu sou responsável. Aquela que nunca, pelo resto da minha vida, vou poder curar.

O Papa dizia que o dia de viver é hoje. Não sou adepta dos conselhos, mas se fosse dar um seria este. Não quero nunca mais deixar para amanhã. Nada.

Tchau, Papa...



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