sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

POR LU CANDIDO :: 

“Heroes”. Era a música que tocava no meu fone enquanto o avião sobrevoava baixo as ilhas do Guaíba antes de tocar a pista do aeroporto Salgado Filho. Meu casaco ignorava os trinta graus lá fora, e a quantidade de remédios na minha mochila indicavam que a volta da minha viagem improvisada ia demorar um bom tempo.

Antecipei minha ida em duas semanas com medo de não conseguir vê-lo. Ironia, enquanto eu voava, a irmã dele, minha tia mais querida, morreu. Parecia que eu estava presa num daqueles pesadelos lúcidos que a gente está vendo tudo e não consegue acordar. A vida não para de acontecer.

Desde que tudo começou, nem dois meses antes, fiz algumas das coisas mais difíceis da minha vida. Nunca pensei que teria de deixá-lo sozinho numa emergência de hospital porque, por mais vontade e dedicação que eu tivesse, estávamos numa pandemia.

Eu nunca chorava na sua frente. Naquele dia, enquanto ele se afastava de costas, empurrado pela enfermeira no corredor vazio, desabei. Então eu entendi exatamente e com muita nitidez o que aconteceria dali em diante.

A morte sempre me fascinou. Falar sobre a morte, estudar a morte, conhecer a morte. Nunca é sobre a morte: é sempre sobre a vida. Agora, eu, que tantas vezes flertei com a morte, estava diante da minha maior prova e não fazia a menor ideia de como agir. Seria mesmo sobre a vida?

Sempre achei que eu ia morrer antes de todo mundo que eu amo. Nunca cogitei enterrar meus pais ou minha irmã. Essa crença serviu como uma espécie de mecanismo de defesa contra o pavor que sentia ao pensar em perdê-los.

Mas as crenças não resistem ao toque da realidade. Quando saí daquela enfermaria na sexta-feira à noite, eu soube que começava a me despedir.

***

Sentada ao lado do leito de meu pai no hospital, sentimentos confusos se misturavam. Escrevia na penumbra enquanto ele dormia. A cada frase, olhava para ver se ele estava respirando. O subir-e-descer pesado do abdômen indicava que sim.

Passei noites acordada, atenta a cada movimento, respiração, qualquer coisa que indicasse que ele precisava de ajuda. Não tinha coragem de dormir e não me sentia cansada. Só queria estar sempre pronta quando ele chamasse.

Aos poucos, ele foi deixando de falar. Não sabíamos o quanto havia de lucidez, só se percebia a sua dor e o sufocamento. Estava fraco, ficava esgotado com todo movimento mínimo, sem forças para falar nem andar, sufocando, completamente dependente em cima de uma cama, alimentando-se por sonda. Eu o vi ser contido (e ainda não me perdoei por não ter impedido isso).

Não era ele, era o oposto do que ele era. Por mais que o quisesse vivo, sabia que não tinha o direito de tentar impedir sua partida. Seria egoísta e cruel.

Desejei muitas vezes que o Dr. House entrasse no quarto gritando “para, é só uma infecção por bactéria”. Porém milagres não existem, não importa o que eu deseje. De tudo que a ciência tinha para oferecer, restou sofrimento agudo, morfina e morte. Sofrimento estava fora de cogitação, e a morfina já não fazia mais efeito.

Minha irmã e eu concordamos que não tentaríamos estender a sua vida. O prognóstico estava dado, não havia o que fazer. Tampouco faríamos dele uma cobaia para tratamentos alternativos e pseudociência. Ouvimos os médicos, e eles nos ofereceram o cuidado mais humano possível.

***

Quando cheguei naquele domingo, ele estava dormindo. Minha irmã estava lá e ficamos as duas com ele durante a manhã. Contamos com a sensibilidade da equipe de enfermagem que nos permitiu burlar a regra do acompanhante único na pandemia. Eram os últimos momentos dele.

À tarde, começou o inferno. As seis aspirações que teve de fazer foram uma tortura. Agonizava e tentava gritar com o resto de força que ainda tinha. Eu segurava suas mãos para que pudesse apertar as minhas. Não sei o quanto era reflexo neurológico e o quanto era reação consciente, mas gosto de pensar que ele não se sentiu só.

Já era madrugada quando ele dormiu. Na verdade, estava sedado pela morfina. O ronco forte das vias respiratórias continuava. Verifiquei se estava numa posição um pouquinho confortável e o cobri. Apaguei a luz do quarto e deixei a porta entreaberta. A claridade que vinha do corredor me mostrava a expressão cansada no rosto de alguém que já lutara demais.

Estava frio. Encontrei um moletom dele no quarto e vesti. Puxei a cadeira para junto da cama. Segurei a sua mão e fiquei ali ouvindo sua rouquidão.

De repente, no meio da rouquidão, houve um silêncio. Depois outro. Os silêncios foram aumentando e ficaram maiores que a rouquidão.

Até que houve só silêncio.

Ainda segurando a sua mão, encostei a cabeça na cama e cochilei. Acordei minutos depois com uma enfermeira no quarto. Ela confirmou o que eu já sabia. Minha viagem acabava ali.

Nunca vou conseguir expressar o que senti naquele momento. Não foi alívio como todos dizem. Foi uma espécie de felicidade por ele e de tristeza profunda por mim, e eu não sei que nome isso tem. Olhei para o seu rosto, e parecia tranquilo.

***

Passei boa parte da minha vida me preparando para a morte, mas para isso não me preparei. Quando se está diante do fato, nada é simples.

Meu pai me ensinou coisas incríveis nos últimos meses, sobre ele e sobre mim. O luto está sendo muito difícil. Coisas que eu olho, músicas que escuto, pessoas com quem converso, suas cinzas na estante.

Tenho saudade do que foi e do que não chegou a acontecer. Nunca mais é tempo demais, e esse é o tempo que tenho com ele agora. A dor é dilacerante. Ainda choro todos os dias, como agora, enquanto escrevo.

Eu sei que é assim que tem que ser. Não estou forçando nenhuma recuperação milagrosa. Quero viver isso. Tampouco estou me afundando em depressão. Estou fazendo disso parte da minha vida, acostumando-me a conviver com essa saudade, até que ela pare de doer. A outra parte é a minha vida seguindo – com todas as loucuras, as risadas, as confusões, as trapalhadas, os perrengues –, como ele queria que fosse.

A morte é a etapa final, é parte do que somos. Ninguém existe sem carregar a sua própria morte. O que a gente faz aqui define o quanto vamos perdurar no tempo pela mente dos outros. Não há céu, não há inferno. Há pessoas que são amadas e lembradas, cuja vida inspira outras vidas quando a natureza já não comporta mais a sua.

A despeito de tudo, acho que estou me saindo bem.

Se eu passei na prova, não sei. Mas continua sendo sobre a vida.





Um comentário:

  1. Escrever tudo isso deve ser bom né. É como tipo exorcizar. Fui lendo e lembrando de minha mãe. Pensei também no egoismo de querer que ela não se fosse, no momento mesmo que ela estava sofrendo e querendo descansar. No final Lu, acho que o que importa é que ele foi feliz e foi amado. Ele vive em você agora. Beijo e forte abraço

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