domingo, 31 de julho de 2022

POR CAROL CANDIDO :: 
Tive dificuldade para começar a escrever aqui no blog. Penso que essa dificuldade seja a mesma para muitos leitores. A vida está mais complexa em tantos pontos, seja no coletivo, seja em nossos dramas pessoais. Estamos tão cansados!


Não, eu não estou burnoutada. Não agora.

Mas eu precisava e queria muito começar, então o jeito mais fácil, por ora, será contando minha história com a síndrome de burnout, esse grave problema de saúde mental gerado pelo trabalho.

E como tudo começou? Convido-os para irmos ao início das minhas aspirações profissionais.

Quando criança, meu sonho era ser veterinária. Desde muito pequena, na minha casa tinha cachorros, gatos e, com certa frequência, um veterinário do bairro ia até lá para cuidar dos bichos. Eu ficava deslumbrada com aquilo: a forma como ele tratava os animais, aplicava injeção, dava remédios, fazia curativos, curava enfermidades.

Uma vez, vi um procedimento cirúrgico e fiquei fascinada. Eu amava os bichos (ainda os amo) e sabia que aquele homem estava ali para garantir que eles ficassem bem. Unindo isso ao meu deslumbre pelos procedimentos que observava, decidi, aos cinco anos de idade, que veterinária era o que eu queria ser quando crescesse.

Saindo do ensino médio, prestei vestibular para Medicina Veterinária duas vezes, mas não passei. Precisava ser universidade pública, pois não tinha condições, nem meus pais, de pagar, muito menos um curso tão caro (depois descobri que, se tivesse sido aprovada na universidade pública, talvez nem conseguisse cursar).

Como se sabe, aqui no Brasil, ingressar em universidades públicas é mais difícil que em instituições privadas. Naquela época (anos 2000), não havia Enem, ProUni. Fiz um escambo num cursinho pré-vestibular, sendo monitora de turma. Controlava a entrada dos alunos na sala, limpava a lousa, organizava os materiais das professoras e professores e, em troca, assistia às aulas do cursinho para me preparar para o vestibular. Cursava à noite, pois durante o dia trabalhava.

Até pouco tempo, eu era bastante preguiçosa para estudar e, naquela época, não era diferente. Então, basicamente, estudava só no horário da aula, isso quando não me distraía com conversas e piadas com os colegas. É, eu também me dispersava facinho. Imagina essa tendência somada ao fato de que eu trabalhava o dia todo durante a semana? Ah, eu tinha um namoro ao qual dedicava boa porção do meu tempo. Resultado: na trave nos vestibulares.

Desisti da Veterinária e, nesse ponto, eu já estava bem envolvida com meu trabalho e totalmente dependente da remuneração que vinha dele. Esse primeiro emprego foi em uma empresa de serviços de portaria, vigia, limpeza… Eu era responsável por alguns cálculos de pagamentos dos funcionários, controles de benefícios, cartão ponto e escalas de trabalho. Trabalho bem típico de recursos humanos, a parte mais administrativa dessa área.

Então, decidi, ou melhor, precisei abandonar a Veterinária e fui fazer Administração em uma universidade particular. Antes eu só tinha a Veterinária na cabeça e, não sendo ela, não fazia ideia de qual curso de graduação fazer. Optei pela Administração, pois era a opção mais fácil e óbvia relacionada ao meu trabalho. Passei fácil no vestibular daquela universidade, fiquei entre os primeiros colocados estudando o mínimo para isso e, depois, durante o curso, foi esse mesmo padrão: sem muita dedicação, bastante preguiça e cumprindo tabela.

Embora eu não tivesse vontade de estudar, sempre fui bastante informada, antenada, com uma visão mais ampla sobre as coisas e o mundo, com capacidade de me inteirar rápido de variados assuntos. Podia não ser nota 10 nas disciplinas, mas eu sempre soube do que tratavam, motivos, impactos e relações. Quando o interesse pintava, o 10 vinha.

E momentos de maior interesse vieram. Por exemplo, na disciplina de sociologia e ética, em estatística e em todas as seis matérias de Recursos Humanos. Elas tratavam de capital e trabalho, relações trabalhistas, comportamento humano, cultura e clima, liderança, psicologia dos grupos e psicologia organizacional. Quando estudei essas matérias já havia avançado alguns anos no meu trabalho e fui me tornando uma profissional de RH. Aqui está o início da minha história com o burnout.

Criei uma visão romântica sobre a área de RH e o mundo corporativo. Lá naquela época, acreditei profundamente que, por meio dessa área, seria possível construir relações de trabalho mais equânimes e justas, diminuir a exploração, enfim, construir relações de trabalho com maior respeito ao humano. A realidade não é assim. Em muitos contextos organizacionais, essa área pode ser usada, justamente, para manter a exploração, as relações abusivas e nocivas de variados aspectos. Pode ser também uma área fantoche ou decorativa. Hoje a área de RH ganhou outros nomes, mais bonitos: gestão de pessoas, gente & gestão, people.

Aos profissionais de RH: isso não é uma crítica direta a vocês. Convivi com uma quantidade imensa de bons profissionais dessa área, pessoas altamente dedicadas e bem intencionadas. O problema não são vocês individualmente. A questão é mais complexa e é muito importante que busquem compreender esta complexidade e todas as limitações de seus papéis em prol do cuidado com as pessoas nas empresas.

Voltando à minha história, já estava no final da graduação em Administração e tive uma decepção imensa no meu emprego nesse momento, por não ter um projeto que desenvolvi aprovado. Trabalhei de forma árdua naquele projeto. Foi a primeira vez que pedi demissão e, saindo do emprego, coloquei toda minha energia no final do curso de Administração, época em que eu estava cursando as disciplinas de RH. Além disso, época em que comecei a me interessar pelo tema saúde mental e trabalho. Quando comecei a ler sobre a síndrome de burnout, me identifiquei em tantos pontos, achei tão importante todo aquele conteúdo que estava acessando. Nessa época, faz mais de dez anos, comecei a fazer psicoterapia também, pois entendia que para trabalhar com pessoas, precisava ter um suporte. Esse foi o motivo consciente, mas, na verdade, ali eu já estava em exaustão e pedindo socorro.

Meu trabalho de conclusão de curso da graduação teve o seguinte título: A Síndrome de Burnout e o Contexto Organizacional. Foram meses de estudo, pesquisa, entrevistas, reuniões profundas com minha orientadora e dedicação como nunca antes. Fui aprovada com nota máxima pela banca e muitas recomendações para evoluir na pesquisa com meu trabalho. Eu não consegui fazer isso.

Ainda não tinha caído a ficha sobre a realidade do mundo corporativo e da área de RH. Comecei a entrar num looping de entra e sai em empresas, com as saídas sendo coroadas por belos embates com a alta gestão e as diretorias. Os ingressos nos empregos começavam bem, fase que se chama de integração nas empresas. No processo seletivo as expectativas eram alinhadas e logo após eu entrar em campo para jogar, tudo se apresentava diferente. Assim, começava meu sofrimento, vinham os conflitos e o rompimento. O que sobrava era o sentimento de frustração, desqualificação e impotência. Cheguei a ficar alguns meses sem trabalho entre uma mudança e outra, o que prejudicou demais minhas finanças e aumentou o sofrimento também.

Depois de dez anos nessa vida, decidi não ser mais RH de empresas e fiz uma transição de carreira. Fui atuar em consultoria. Comecei minha experiência com atendimentos individuais, dando suporte a profissionais em estratégia de carreira. Esse trabalho inclui refletir sobre trajetória de vida e profissional, pensar em processos de escolha, definir objetivos de carreira de curto, médio e longo prazos e traçar um plano de ação para as coisas saírem conforme o desejado. Eu não tenho conflito com essa atuação e com os atendimentos em si. Me identifico e me realizo com essa atuação e, modéstia à parte, conduzo muito bem os processos juntos aos indivíduos. O que é nocivo nesse trabalho é a sobrecarga, a agenda lotada, a pressão da consultoria ou empresa que tem a cultura do mais com menos, que é uma característica do negócio.

Esse contexto me levou direto ao reencontro com o burnout em 2020, em pleno auge da pandemia da covid-19. Foi uma fase de intensificação da sobrecarga de trabalho, além do medo de perder o emprego e o pavor que o próprio momento nos proporcionou. Mas como tudo que está ruim pode sempre piorar, fui obrigada a fazer uma pausa no trabalho nessa época, não para cuidar do meu estado de exaustão e da minha saúde, mas para cuidar de meu pai que adoeceu e, em dois meses, acabou falecendo.

O burnout foi vencido pelo luto. Aqui não teve batalha do bem contra o mal, do mocinho contra o bandido. Os dois oponentes eram cruéis, tristes e devastadores. Não teve lado positivo, porém, minha atitude com o trabalho mudou, e ser mais racional, objetiva e calculista com as relações de trabalho são as estratégias aliadas desde então, são regras que estabeleci e para as quais estou sempre atenta para conseguir ser fiel e transmito essa forma de ser às pessoas que atendo, refletindo e estruturando juntos estratégias para lidar com tudo isso.

A síndrome de burnout, desde janeiro de 2022, foi incorporada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) à lista de síndromes ocupacionais. Segundo pesquisas (Pebmed, 2022), em média, um a cada três brasileiros sofrem com o burnout. Esse dado representa cerca de 30 milhões de pessoas afetadas apenas no Brasil.

O fato de o burnout ser um problema listado como síndrome ocupacional significa que é um problema de saúde causado pelo trabalho, pelas empresas, ou seja, não é responsabilidade, muito menos culpa, do indivíduo trabalhador. A culpa por esse mal, é do mundo corporativo em função do seu funcionamento predatório, que não respeita a vida e é um sistema que se tornou ainda mais agressivo nos últimos tempos em função de toda problemática social que estamos enfrentando.

É fato que algumas tendências comportamentais, características e condições individuais podem gerar maior vulnerabilidade e dar um acesso mais aberto para a exploração das empresas, para ambientes e relações abusivas. Até mesmo características geracionais tendem a uma proximidade maior com o burnout. De todo modo, ainda assim, essas condições são geradas pelo sistema predatório no qual vivemos e que se intensifica dia após dia.

Para lidar com tudo isso, A Loucura do Trabalho propõe o máximo de informação possível sobre saúde mental e trabalho e toda a complexidade que isso envolve. Enquanto escrevia este texto, fui-me dando conta de quanto conteúdo é necessário para tomarmos conhecimento sobre tudo isso. Esse texto é muito pequeno e superficial, inclusive, mas é o começo. Aqui em A Loucura do Trabalho teremos espaço para debate, escuta, construção de aprendizado em conjunto, em diversos formatos, para que possamos estabelecer estratégias de fortalecimento e valorização da vida como um todo. Para que não esqueçamos que até podemos fazer parte de uma engrenagem, porém não somos máquinas nem robôs.

Entre na Sala de Espera de A Loucura do Trabalho e seja muito bem-vindo!

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