POR LU CANDIDO :: Os estudos sobre psicodélicos e saúde mental ganharam enorme destaque nos últimos anos na imprensa mundial, chamando a atenção para o mundo da psiquiatria sobre essa possibilidade de fato promissora. O New York Times chegou a falar em “revolução na psiquiatria” com o uso de MDMA.
É extremamente positivo que a comunidade científica consiga se voltar e obter apoio público a uma área por décadas execrada socialmente. Mas vamos colocar um pouquinho de ciência e crítica nessa fogueira?
O que é psicodélico?
As substâncias psicoativas – ou psicotrópicas – produzem experiências mentais, alucinógenas ou não, que têm efeito na vida consciente de quem usa. Daí a importância para o tratamento de questões de saúde mental, psiquiátricas ou psicoemocionais.
O uso dessas substâncias é milenar. A ayahuasca, um chá extraído de uma espécie de cipó, por exemplo, já era parte dos rituais dos povos originários do Brasil muito antes de os colonizadores chegarem aqui. No México (e em parte do território contíguo dos EUA, principalmente no Texas e no Novo México), encontramos o peiote, uma espécie de cacto. É usado em rituais, mas também para fins medicinais.
Há muitos outros exemplos. Ou seja, essa não é uma descoberta vinda do nada. O uso de psicodélicos tem uma história.
Cortando para o século 20, em 1938 um químico suíço, chamado Albert Hofmann, criou o LSD a partir do ácido lisérgico, extraído do “Claviceps purpúrea”, ou esporão-do-centeio, um fungo alucinógeno que ataca o centeio. Em 1958, ele conseguiu isolar a psilocibina, a grande estrela do momento.
A partir da década de 1960, começa a ser registrado o uso recreativo dessas substâncias.
O hype
Com o uso recreativo, os psicoativos passaram a ser retratados pela mídia – principalmente, mas pelas instituições científicas também, vale ressaltar – de forma extremamente negativa. Isso se deu em determinado contexto social e político, exacerbando o preconceito, marginalizando os usuários e colocando essas drogas na ilegalidade até hoje.
De cerca de uma década e meia para cá, os estudos médico-científicos ganharam força. Isso é positivo, pois há uma carência de drogas para o tratamento de diversas condições mentais. Alguns pacientes, por exemplo, apresentam resistência às medicações existentes. Outros sofrem efeitos colaterais que inviabilizam a continuidade da administração de determinada droga.
Porém foi nos últimos dois ou três anos que os tratamentos com psicodélicos viralizaram. A palavra “hype”, em inglês, significa moda. Vamos traduzir como “pico de euforia”. É o que estamos vivendo com a perspectiva dos tratamentos com psicodélicos. Aqui vou roubar descaradamente a cientista Gabriela Bailas (e agradecê-la, porque não sou da comunidade científica e só tive acesso ao abstract), que fez um post ótimo (acesse aqui) sobre o tema com um artigo do JAMA Psychiatry, “Preparando-se para estourar a bolha do hype dos psicodélicos”.
O texto destaca o “número perturbadoramente grande de artigos” que “divulgou os psicodélicos como uma cura ou droga milagrosa” e menciona o “potencial de investimento dos psicodélicos atingindo bilhões de dólares”. É evidente que isso interfere no rigor científico e na aplicação de pesquisas com cautela e respeito ético, como as pesquisas duplo-cego, por exemplo.
De um lado, os entusiastas dos psicodélicos não levam em conta os riscos, quando “esses riscos estão bem estabelecidos”. É sabido há muito tempo que existem grupos de risco para o uso de psicoativos.
Por exemplo, em pessoas com predisposição (histórico familiar principalmente) a psicoses (esquizofrenia, transtorno bipolar) e transtorno de personalidade limítrofe (borderline) os psicoativos podem funcionar como gatilho para desenvolvimento das doenças e surtos psicóticos. Também é destacado o risco de intoxicação e uma diversidade de efeitos colaterais que podem inviabilizar a continuidade do tratamento, como qualquer outra droga.
Além disso, “o potencial de tratamento dos psicodélicos é real”, diz o artigo, “mas é menos impressionante do que o esperado”. Para embasar essa informação, o texto se refere a um “estudo recente comparando a psilocibina com tratamento padrão-ouro da depressão”.
Já os supercéticos reduzem os efeitos subjetivos a “um estado psicótico de delírio”. Essa é uma visão equivocada. Estudos científicos demonstraram que o tratamento apresenta resposta positiva e significativa “com efeitos favoráveis persistentes para a maioria das pessoas”.
Aonde isso vai dar?
No post da Gabriela, há um gráfico do “ciclo do hype”, no qual não vamos nos aprofundar. Em resumo, há um primeiro momento de descoberta que empolga até chegar em um pico de expectativas infladas, onde supostamente estamos agora. Ocorre então um declínio pela frustração com a não realização das expectativas. Após o declínio, “avaliações bem calibradas do estado da evidência podem começar a ocorrer”. Por fim, atinge-se o “platô da produtividade”, “o contexto social em que a pesquisa rigorosa e as aplicações clínicas responsáveis florescem com mais eficácia”. É o que desejamos que aconteça.
Aonde vamos chegar, não sabemos. Há muita coisa em jogo. Antes de romantizarmos o tratamento, de o entendermos como um meio alternativo e de criarmos ideologias sobre o uso dos psicodélicos, é preciso descer à Terra e pôr os pés no chão. A divulgação irresponsável apenas dos sucessos do estudo, como se fosse uma panaceia, pode levar ao uso sem critérios dessas substâncias, causando estragos irreparáveis. A divulgação precisa, no mínimo, conter alertas sobre restrições populacionais e efeitos colaterais.
Não é “a” alternativa. É “mais uma” alternativa no rol de tratamentos que conhecemos até então. Não podemos esquecer que existem outras opções além das drogas químicas, como a eletroconvulsoterapia (controversa, mas existe) e a estimulação magnética transcraniana.
Ao mesmo tempo, e talvez o mais importante, a indústria farmacêutica impulsiona esse hype. Em artigo à respeitada revista científica Nature (“As promessas e perigos da farmacologia psicodélica para a psiquiatria”), os cientistas Tristan D. McClure-Begley e Bryan L. Roth destacam que as descobertas sobre os psicodélicos “inspiraram uma ‘corrida do ouro’ de interesse comercial, com quase sessenta empresas já formadas para explorar oportunidades de psicodélicos no tratamento de diversas doenças”.
Por fim, é preciso descriminalizar e legalizar as drogas. Nos EUA, algumas farmacêuticas já estão se movimentando nesse sentido. Em outros lugares, pode não ser tão lucrativo, e o tratamento corre o risco de virar luxo de poucos que podem pagar. Em todo o caso, por uma questão de coerência, essa bandeira deveria estar hasteada ao lado da defesa dos psicodélicos.
Não pretendemos aqui esgotar o assunto. Nossa pretensão é lançar um raio num céu azul, suscitar um debate sobre um tema de suma importância que vem sendo tratado como mais uma descoberta capitalista – e é só isso que vai ser se não problematizarmos a questão e não a levarmos a sério.
Em um mundo dominado por mídias sociais, não é difícil que essa se torne uma guerra de opiniões baseadas em informações superficiais e valores morais, o que não deveria nunca atravessar a ciência.
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