Morrer de trabalhar tem sido cada vez mais literal.
Condições inadequadas de trabalho, precarização, relações abusivas e opressoras, assédio, sobrecarga e tantos outros fatores vêm prejudicando a saúde mental dos trabalhadores. O pior: tudo isso pode levar à ideação suicida e ao próprio suicídio em função do trabalho.
De 2020 para cá, com a crise sanitária e a intensificação da crise socioeconômica, essas questões estão se agravando severamente. O psicólogo Adam Grant definiu que o sentimento predominante de 2021 em relação ao trabalho talvez seja definhamento – languishing – “um sentimento de apatia, estagnação e vazio. Parece que você está se arrastando pelos dias, vendo sua vida através de uma janela embaçada”.
As previsões positivistas feitas por teóricos* do capitalismo de antigamente falharam, erraram feio! Elas previam que a esse ponto da história da humanidade estaríamos em condições favoráveis, que, em função dos avanços tecnológicos, o problema da desigualdade social e da escassez teria se resolvido, as pessoas trabalhariam menos, em torno de 15 horas semanais, e teríamos um problema a resolver que seria: o que fazer com todo o tempo ocioso?
Estamos cada vez mais distantes desse futuro fantasioso e o presente é perturbador. O que temos hoje, é uma sociedade com muitas contradições e uma complexidade de problemas gravíssimos. Índices de pobreza e desemprego aumentam dia após dia, enquanto o nível de adoecimento pelo excesso de trabalho cresce de forma absurda. Já falamos aqui outras vezes e sempre vale ter em mente: só no Brasil, um em cada três brasileiros está em sofrimento pelo trabalho, sente-se esgotado, em burnout. Esse dado representa cerca de 30 milhões de pessoas afetadas apenas no país (Pebmed, 2022).
O trabalho e suas configurações atuais têm deixado as pessoas doentes e roubado a vontade de viver. O trabalho e a falta dele têm nos sequestrado da vida. Nos últimos dois anos, cresceram intensamente movimentos promovidos por trabalhadores fazendo essa denúncia. Para citar alguns:
:: Movimento de demissão silenciosa ou quiet quitting: mais recente, ainda em entendimento, se tornou popular em vídeos postados por jovens americanos nas redes sociais e envolve não ir além de suas obrigações no trabalho, fazendo apenas o básico, não tendo pró-atividade, disponibilidade, atuando pela economia de esforços.
:: Movimento antitrabalho: muito semelhante ao anterior, tem como referencial a comunidade r/antiwork, em Inglês, do agregador de conteúdo e rede social Reddit. Os apoiadores do movimento antitrabalho acreditam que as pessoas deveriam organizar-se e trabalhar apenas o necessário, em vez de trabalhar por longas horas para gerar excesso de bens ou lucro.
:: A grande renúncia: ou The Great Resignation foi a denominação dada pelo psicólogo e professor americano Anthony Klotz para descrever a onda de demissões voluntárias desde o início da pandemia da COVID-19 nos Estados Unidos.
Evidentemente, muitas características desses movimentos não são novidade, porém nunca antes se viu ocorrer algo assim de forma tão coletiva. Isso denuncia o quão mal está o trabalho em nossas vidas e a falta de perspectivas em relação a ele. Mais adiante, aqui em A Loucura do Trabalho, podemos abordar esses movimentos em detalhe (se nossa rotina, também alucinante, permitir).
Ainda assim, compreender a relação entre suicídio e trabalho é algo bastante complexo. Muitos são os casos de sofrimento pelo trabalho que não são relatados, denunciados e registrados oficialmente. Mas vamos tentar aqui compartilhar alguns fatos.
Caso France Télecom
Em 2019, ocorreu um julgamento histórico na França, no qual sete ex-executivos da empresa France Télécom foram convocados a responder pela morte de 35 funcionários que tiraram a própria vida. Foram acusados de assédio moral entre 2008 e 2009.
Algumas das vítimas culparam a empresa pelo seu desespero e sua opção pelo suicídio. Elas deixaram cartas e e-mails de despedida com conteúdo como: um deles enviou e-mail de despedida ao pai; uma mulher de 32 anos disse que não queria trabalhar com o novo chefe; antes de se matar, um homem de 51 anos deixou uma nota de suicídio acusando seus chefes de “gerir pelo terror”: “Eu estou me matando por causa do meu trabalho na France Télécom É o único motivo”.
O ex-CEO da France Télécom Didier Lombard, seu sub Luis-Pierre Wenàs e o diretor de Recursos Humanos Olivier Barberot foram acusados de promover um sistema de “assédio moral institucionalizado” que teria como objetivo forçar funcionários a pedirem demissão. Em prol da redução de custos, eles queriam cortar mais de 20% da força de trabalho por meio da demissão de 22 mil funcionários, porém não conseguiram por causa da legislação trabalhista. Diante disso, os executivos decidiram “tornar a vida dos empregados intolerável”, disseram os promotores do caso.
O agro é... morte
Em pesquisa realizada no Brasil em 2019 pelo CCVISAT (Centro Colaborador da Vigilância dos Agravos à Saúde do Trabalhador), foi constatado que a mortalidade por suicídio vem crescendo em todos os grupos ocupacionais, com maior elevação na indústria (+30%) e na agropecuária (+23%). Não há uma explicação simples e única. No entanto, vamos considerar um dado importante? O setor do agronegócio hoje representa um dos grandes contribuintes para a economia do país. Poderíamos, então, pensar que esse setor estivesse atuando naqueles pontos que citamos lá no início: maior geração de riqueza, resolução do problema da escassez, geração de muitos empregos, redução de carga horária de trabalho?
Ao contrário disso, o que temos é maior concentração de riqueza e desigualdade. Entre os 290 brasileiros bilionários, segundo a lista da Forbes, 54 estão ligados ao agronegócio. Desses, apenas 10 são mulheres. Esses empresários atuam na área ou têm negócios relacionados à produção no campo, indústria alimentícia e cervejeira. Os trabalhadores do agro são altamente expostos a produtos químicos, que são os principais componentes dos agrotóxicos tão utilizados no setor. Eles também, em sua maioria, possuem baixa renda e instabilidade no emprego, sofrem muita pressão por produtividade e têm acesso limitado à educação e a serviços de saúde de qualidade. Esses são motivos de sobra para um alto nível de sofrimento no trabalho, o que faz uma ponte direta com os casos de suicídio.
No Japão
Em 2020, quase 2.000 pessoas cometeram suicídio no Japão por questões relacionadas especificamente ao trabalho. Do Japão também vem a expressão karoshi, a morte por excesso de trabalho, que está relacionada à pressão física e ao estresse mental do local de trabalho. O Japão tem tradicionalmente uma das jornadas laborais mais longas do mundo, e o fenômeno não é novo – o karoshi começou a ser identificado nos anos 1960. Mas casos recentes têm colocado o tema na pauta de debates no país.
O estagiário em São Paulo
Em agosto deste ano, em São Paulo (SP), um caso chocou o país. Um estagiário tentou tirar a própria vida na sede de um grande escritório jurídico, o Mattos Filho. Pelos relatos expostos, o jovem de 19 anos estaria sofrendo forte pressão para cumprir um prazo, o que o levou a acumular, nos três dias anteriores, uma jornada de trabalho muito acima das seis horas regimentais. O jovem sobreviveu e desejamos profundamente que seu sofrimento esteja sendo cuidado. Esse caso trouxe à tona um alerta generalizado e tem provocado muitos desdobramentos e discussões no contexto corporativo jurídico.
De fato, estamos nos matando de trabalhar
Do trabalho virtual extenuante e do presencial precário, das relações abusivas e opressoras à falácia do propósito, autonomismo, empreendedorismo, dos discursos de autoajuda a lá coach à perversidade da meritocracia, estamos muito mal na relação com o trabalho. Chegamos a esse ponto muito mais por razões objetivas, em função do sistema capitalista e neoliberal.
Não se trata de uma questão a ser analisada apenas individualmente, caso a caso. É complexo o caminho para o tratamento desse problema, mas é importante que pensemos juntos no quão estamos sendo direcionados também a dar significados fantasiosos ao trabalho, o que nos leva a muitas formas de perda da vida. A vida deveria ser muito mais que essa demanda infinita, que essa meta inatingível, que esse turbilhão todo que nos consome em profundidade. Mas se a vida nos está sendo roubada, como não sucumbir e criar formas de a resgatar?
Discussões mais amplas sobre políticas públicas, regulamentações e fiscalizações voltadas à saúde mental e ao trabalho são necessárias para a criação de estratégias efetivas que visem a prevenção do suicídio. Enquanto não temos nada disso, como podemos fazer o necessário por si e pelo coletivo ao redor para ir mudando essa realidade? Longe de querer aumentar a pressão com essa pergunta, mas se não fizermos provocações assim a nós mesmos, o que mais poderá fazer com que nos mobilizemos para ter condições de trabalho melhores? Vamos pensar juntos e ficamos por aqui, por enquanto, com esse convite.
* Em 1930, o economista John Maynard Keynes escreveu um polêmico ensaio em que afirmou que, em 2030, os seres humanos seriam tão mais ricos e tão mais avançados tecnologicamente que o problema da escassez teria sido resolvido. Segundo ele, estaríamos trabalhando apenas 15 horas por semana e o grande problema seria o que fazer com tanto tempo livre.
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Foto: Yan Krukov |
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