POR LU CANDIDO :: Estava exausta e quase desistindo quando entrei em seu consultório há cinco anos. Era uma das trinta salinhas de quatro ou cinco metros quadrados, na clínica psiquiátrica que atendia meu convênio.
Não lembro exatamente por quantos psiquiatras havia passado desde que me mudara para São Paulo onze anos antes, mas com certeza ocupavam mais que as duas mãos. Assim, quando sentei na frente da Dra., não esperava mais do que uma ou duas perguntas breves enquanto ela fazia as receitas.
Essa era uma situação que eu realmente já havia aceitado. Só precisava de alguém com CRM para me dar receitas, e o resto resolveria na terapia – ou aceitaria a falta de solução. Mas não foi assim. Depois de uns vinte minutos, saí do consultório com as receitas devidamente ajustadas e uma consulta médica de verdade.
Hoje, 26 de dezembro de 2022, ao entrar em contato com a clínica para marcar um teste neuropsicológico, recebi a notícia de que minha médica havia se desligado. O convênio não cobre o teste e o preço é proibitivo para mim, de modo que apenas poupei o trabalho de um atendente que teria de me ligar para avisar e lidar com mais uma paciente frustrada.
Não estou frustrada. Estou de luto.
Isso não é exagero, tampouco pessoal. Quem necessita de atendimento psiquiátrico contínuo, principalmente se depende de plano de saúde, vai entender o que estou falando.
Ao longo desses cinco anos, passei por muita coisa, algumas desesperadoras. Há pouco mais de três anos, a Dra. esteve comigo durante uma grave e longa crise, com ideações suicidas. Quando eu estava com meu pai no hospital, antes de ele morrer, ela me atendeu por vídeo. Ela tratou comorbidades e não aumentava a medicação à toa. Ela confiava em mim para administrar a doença.
Nos últimos tempos, eu estava passando por um conflito que vez ou outra ressurge. Eu estava com medo de seguir com um projeto importante porque tinha medo que fosse apenas sintomas de mania, de que eu não fosse capaz. Ela me mostrou a diferença entre as coisas, fazendo com que eu resgatasse meu histórico e me visse como eu sou de fato em mania.
E alertou: “E você pensa demais”. Ela não disse isso em tom de repreensão nem de forma grosseira. Realmente, como paciente de TAB (transtorno afetivo bipolar), preciso levar isso em conta. O volume e a velocidade dos pensamentos em nossa cabeça são incalculáveis. Que médico vai acolher uma paciente com esse sintoma, pensar demais? Será que ele ou ela vai ter a paciência que a Dra. tinha para ouvir meus devaneios?
Como a maioria dos pacientes psiquiátricos, não tenho condições de bancar um tratamento particular. Quem necessita de atendimento por convênio e já teve pelo menos uma experiência com um médico adequado sabe a desgraça que é. Normalmente você tem acesso a clínicas que contam com muitos médicos em seus quadros e com uma rotatividade grande.
Os pacientes são agendados como se estivessem numa linha de produção. O médico ou médica tem um tempo limite de duração da consulta. Se ultrapassar, tranca a linha, e as peças seguintes ficam malfeitas. E como recriminar os médicos? Os planos de saúde pagam um valor baixíssimo por consulta. E uma parte ainda fica com a clínica. Medicina é um trabalho, não um voluntariado ou um ato de amor.
Sabe? Eu tinha um pressentimento já há algum tempo. Não um pressentimento místico, mas um pressentimento de quem pensa demais. Sabia que ela iria embora, era só questão de tempo. Às vezes até pensava: o que ela tá fazendo aqui? Ela não combinava com esse perfil. Mas não me preparei para esse momento.
Essas clínicas de convênio ainda têm isso: você não pode ter contato direto com seu médico. Assim, tudo que tive foi um informe burocrático de uma atendente pelo WhatsApp. Foi dessa forma que se rompeu uma relação de confiança construída ao longo de cinco anos. Fiquei suspensa no ar. É um ciclo que não se encerrou, e fiquei presa num limbo para o qual não vejo saída completa.
Não sou dessas pessoas que acham que são especiais para seus médicos. Sou uma entre as centenas de pacientes que já passaram pelas mãos da Dra. Acontece que, diferentemente de outras especialidades, a relação paciente-psiquiatra leva tempo para ser construída. É um trabalho quase artesanal, em que o médico precisa conhecer seu paciente e a cada consulta aparar arestas, lapidar e polir.
Hoje começo uma saga, a loteria dos médicos. Tentei marcar com um que conheço, mas ele não atende meu plano de saúde. Então aceitei qualquer um que a agenda virtual ofereceu. Honestamente, estou tão cansada que não tive vontade nem de fazer o básico: pesquisá-lo na internet.
Se eu tiver sorte, ele vai ler meu prontuário, ver o resultado dos exames que a Dra. havia pedido (e tirar minhas dúvidas), perguntar como passei os últimos dois meses – principalmente as festas de fim de ano, período que pode detonar gatilhos –, ajustar ou não a medicação e marcar a próxima consulta. Em uma situação normal, com um bom médico, isso já é complicado. Você tem que começar tudo de novo, contar sua história do zero, reviver coisas difíceis. É tudo parte de um processo necessário, nunca indolor.
Não sei se vou ter paciência para ficar testando médicos. Por isso, já estou trabalhando para aceitar a hipótese mais provável: ter um CRM pra continuar me medicando. Sinto muito pela minha psicóloga, de verdade. Teremos mais trabalho pela frente. Uma membra da equipe partiu.
A Dra. foi a melhor psiquiatra que tive. Foi um relacionamento de cinco anos que chegou ao fim sem um fechamento. Essa foi uma das perdas mais significativas que já tive. Meu grau de consciência sobre minha saúde mental não melhora as coisas. Pelo contrário, piora. Racionalizar significa, às vezes, ter a certeza de que você não pode consertar certas coisas.
Por isso, estou sofrendo sim. Estou de luto sim.
Obrigada por tudo, Dra.! Mas não posso deixar de dizer que isso é uma merda.
BÔNUS: Histórias de consultório – uma amostrinha das coisas inusitadas e bizarras que já vivi dentro de um consultório psiquiátrico.
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