POR LU CANDIDO ::
Se você se interessa por saúde mental, ponha esta série na sua lista [contém spoiler].
“Uma dose diária de sol” é uma série de drama[1] sul-coreana que estreou em novembro de 2023 na Netflix, dirigida por Lee Jae-kyoo. A história é baseada em um famoso webtoon com o mesmo nome, de Lee Ra-ha, uma ex-enfermeira que se inspirou nas suas experiências reais para criar as histórias.
A série gira em torno do dia a dia na unidade psiquiátrica de um hospital
universitário. A enfermeira Jung Da-eun, interpretada por Park Bo-young (“Concrete
utopia”, “Desgraça ao seu dispor”), é o elo de ligação entre as muitas histórias.
Ela é transferida para a psiquiatria com o argumento de que dava atenção
excessiva aos pacientes – gastava muito tempo com um único paciente. Assim, a
psiquiatria supostamente seria mais adequada a esse comportamento.
A série aborda diversos transtornos mentais por meio de personagens que os
portam. Ao longo dos doze episódios passam problemas como transtorno bipolar,
depressão, síndrome do pânico, transtorno de personalidade borderline, dissociação,
demência temporária, deficiência intelectual, psicose delirante, automutilação
e suicídio.
Em paralelo aos atendimentos, por meio dos diálogos entre médicos, pacientes, enfermeiras
e familiares, os transtornos são explicados ao público de forma científica e didática,
de um modo simples e natural – origem, sintomas, tratamento adequado, consequências
psicossociais etc.
O primeiro episódio é sobre uma mulher com transtorno bipolar. Ela chega ao
hospital em um quadro de mania e tem um surto, retratado de forma sensível e bonita
(embora seja verdade que tudo que vem depois é horrível; e verossímil). Ela sai
do quarto, se despe e começa a dançar no corredor. Bom, os sul-coreanos não são
muito adeptos da nudez pública, então produziram uma cena fantástica (no
sentido de fantasia) com uma névoa que a envolve enquanto se movimenta.
Mas a história dela não para aí. Conforme o tratamento vai se desenrolando, aspectos
ambientais que podem gerar as crises vêm à tona. Os aspectos ambientais de uma
doença mental são aqueles que dizem respeito às condições de vida do sujeito,
suas interações, situação socioeconômica, condições de trabalho, influência de grandes
problemas da sociedade entre outros. Ou seja, aquilo que não é neurobioquímico
e genético.
Surge, então, uma mulher que é muito mais que uma doença mental. A vida inteira
obedeceu a alguém – primeiro à mãe, depois ao marido, um homem bem-sucedido arranjado
pela mãe. A certa altura, ela consegue verbalizar o que sente e diz que o momento
em que foi mais feliz foi quando estava dançando nua, porque pode ser ela mesma.
Como nos casos seguintes, sem sair da ficção e sem que pareça um enxerto forçado,
explica-se o que é o transtorno bipolar, possíveis causas e como é o tratamento
– na vida real. Assim, a série apresenta toda a complexidade do transtorno
bipolar – e das doenças mentais em geral – se chocando contra estigmas que expõem
a doença como um problema apenas individual ou psicológico.
Os recursos fantásticos e efeitos especiais se repetem em vários outros momentos
da série. Eles ajudam a entender o sentimento dos doentes. A mãe exausta com
demência temporária, vendo tudo sumir em volta, ficando suspensa no ar. O mundo
fantástico de dragões da mente do jovem concurseiro. E obviamente a moça dançando – tive a
estranha experiência de sentir o que ela estava sentindo sem que eu estivesse em
crise.
O melhor amigo de Jung Da-eun, Jang Dong-yoon, interpretado por Song Yu-chan (“Mr.
Sunshine”, “Devils”) desenvolve transtorno do pânico em função da sobrecarga física
e psíquica do trabalho. Suas crises são representadas pela água subindo ao seu
redor até afogá-lo. A cena é muito bem construída, de modo que causa angústia no
espectador.
Contudo, não se trata apenas da saúde dos pacientes. A saúde mental das enfermeiras é colocada à mostra. Neste ponto, é interessante observar que todas as enfermeiras são mulheres, enquanto quase todos os médicos são homens.
Pressionadas por uma sociedade machista, cada uma encontra uma forma de lidar com a própria situação. O fardo da tripla jornada e do trabalho exaustivo, nem sempre escolhido por vocação ou amor, as leva a situações limite, potencializadas por maridos parasitas, parentes abusivos, preconceito, entre outras coisas.
É no contexto do trabalho que a personagem principal, a enfermeira Jung, adoece e vai parar em uma clínica psiquiátrica que não é a sua. Após perder um paciente, ela passa por uma fase de negação que se estende além do luto. Ela não se reconhece na pessoa doente: ora, se ela é quem cuida dos doentes mentais, como poderia estar doente? A consequência é uma depressão severa.
Após receber e alta e de muito resistir, Jung Da-eun retorna ao trabalho. Ela acredita que não é mais capaz de cuidar dos doentes por ter estado doente. E, é óbvio, tem medo do estigma. Ela tinha razão sobre a segunda parte. O preconceito e os ataques que ela sofre dos familiares dos pacientes é brutal, ao ponto de protestarem pela sua demissão. Para mim, este foi o segundo momento mais difícil de assistir.
Boa parte do que foi dito a ela, já ouvi. O que os pacientes personagens têm de ouvir, já ouvi. Não digo isso de um lugar de vítima, mas de testemunha. O estigma é o maior empecilho para que tenhamos todos o tratamento adequado. Nem mesmo o trabalho que tenho com psicoeducação me deixa imune ao preconceito. A diferença é que não vou largar meu tratamento quando ouvir uma m&#%@, mas a maioria vai.
A sociedade sul-coreana também não escapa das críticas. Além do próprio estigma com as doenças, a série trata de temas como machismo, assédio moral e abuso no mundo do trabalho, pressão do capitalismo principalmente sobre os jovens, pobreza e diferenças de classe. Ou seja, resguardadas as diferenças culturais, estamos falando da mesma sociedade onde todos vivemos, a sociedade capitalista.
Há também uma diferenciação entre o hospital universitário e os hospitais comuns, representado principalmente nas cores. Enquanto o hospital universitário (voltado à pesquisa, investimento em mão de obra qualificada e tecnologia, tratamento humanizado etc.) tem um ambiente colorido e acolhedor, no hospital privado tudo é branco, do uniforme dos pacientes ao dos profissionais, passando por paredes e leitos.
“Uma dose diária de sol” é uma das produções sobre saúde mental mais realistas que já vi. Ao tratar de questões muito complexas, a série as expõe de um jeito simples, sensível e bonito. Isso a faz abrangente e coerente. Não apenas o roteiro, mas também a estética é pensada para gerar empatia.
Embora haja certa representação e síntese em cada paciente por uma questão de formato, não vi uma estereotipia, ao contrário da maioria das produções que tratam do tema. As atuações são muito próximas do que vivenciamos no mundo real.
Esta é uma série que pode muito bem ser usada como material psicoeducativo. Ela informa, combate estigmas e sensibiliza. Além disso, mostra um lado pouco conhecido, o daqueles que cuidam e convivem com doentes mentais. Para nós, portadores de doença mental, é muito significativo conhecer o outro lado.
Para fechar, tem um romancezinho, é claro. Mas passa muito longe de ser o centro do enredo.
ALGUMAS PRODUÇÕES SUL-COREANAS SOBRE SAÚDE MENTAL:
:: Good Doctor (série que deu origem à estadunidense de
mesmo nome) (Netflix, Viki, Kokowa)
:: Uma advogada extraordinária (Netflix)
:: O som da magia (Netflix)
:: Hyde, Jackill, eu (Netflix, Viki, AppleTV)
:: Sky Castle (Netflix, Viki)
:: Tudo bem, isso é amor (Viki, Kokowa)
:: My Mister (Netflix, Viki)
:: Tudo bem não ser normal (Netflix)
:: Loucos um pelo outro (Netflix)
:: Amanhã (Netflix)
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[1] A palavra “dorama” é uma palavra japonesa. O Japão dominou a Coreia por muito tempo e fez barbaridades, por isso os coreanos a consideram ofensiva. A palavra também reduz a diversidade dos dramas coreanos, já que o país produz uma variedade de conteúdos, incluindo dramas históricos, romances, comédias, ficção científica, terror, policial e outros gêneros. Chamar tudo de “dorama” é uma simplificação que não reflete essa riqueza e diversidade. Para a Associação Brasileira de Coreanos, “é preconceituosa a decisão de generalizar as produções do leste-asiático” e “generalizar é confundir as peculiaridades. É como falar que toda comida nordestina é comida baiana”.
Dorama é um gênero de produção televisiva que surgiu no Japão e fica ali entre a novela e o seriado. Recomendo “Garotos em vez de flores”, “Code Japan: o preço dos desejos”, “Desnatural”, “Em uma noite estrelada”, “Meu primeiro amor”, “Detetives sem perigo”, “Seguidores” entre outros.
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