segunda-feira, 17 de setembro de 2018

POR WALTER M.:: 
Quem é você?




Sim, você tem um RG, um cartão do banco e todo mês o porteiro do prédio te entrega uma conta de luz e condomínio. Tudo isso tem em comum um nome e um sobrenome que, em certa medida, te dizem quem você é.

Se você teve o azar de presenciar um acidente de carro, e um repórter teve a sorte (pra ele) de estar por perto, vai te entrevistar e publicar: Fulano de tal, profissão tal, idade tal, afirmou que o veículo vinha em alta velocidade antes de colidir com o poste.

Para a sociedade somos isso: nomes, números, profissões. Mas quando você está em frente ao espelho do banheiro à noite, se olha e se pergunta: “Quem sou eu?” Você é capaz de responder? Alguém seria?

Toda essa digressão para contar uma história não muito interessante. Então, se você for uma pessoa ocupada (como dizem ser todas as pessoas no mundo de hoje, já que não ter algo para fazer urgentemente é por si só motivo de vergonha), já fica advertido aqui.

Bom, sempre fui uma criança muito quieta. Muito. Pelo menos para os parâmetros das crianças de minha idade. Tímida ao extremo e avessa às outras pessoas. Lembro de minha mãe sempre ameaçando “me levar ao psicólogo”. Meu pai, ao contrário, não tinha tanta paciência. Certa ocasião, na travessa da rua de minha casa, ele parou um vendedor de picolé e me perguntou qual queria. Não sei ao certo o que ocorreu, se não o escutei ou se estava distraído, mas ao não ouvir uma resposta ele me puxou e chacoalhou forte o braço. Naquela época, apanhar dos pais era algo bem comum, e eu não fugi à regra apesar de ser sempre bem-comportado e aluno modelo da igreja. Mas aquela situação específica por algum motivo ficou.

Havia sempre uma frase que meu pai repetia que ficou na minha cabeça. “Você é pancado.” “Esse menino é meio pancado.” Achava que nunca havia guardado mágoa por isso, preocupava-me muito mais o modo violento como ele tratava minha mãe e meu irmão mais velho. E não achava realmente que houvesse algo errado comigo.

Foi só bem depois, já adulto, que comecei a me lembrar das situações que ocorriam quando criança ou adolescente. E que de certa forma se mantiveram ao longo dos anos. Um exemplo banal: para ir à padaria comprar pão eu permanecia parado em frente ao portão por longos minutos. Uma espécie de preparação psicológica para enfrentar um perigoso desafio.

As tarefas aparentemente mais triviais simplesmente me paralisavam, como um trabalho de escola ou um passeio ao cinema. Era como se um peso gigantesco recaísse sobre meus ombros pelas coisas mais simples ou que pelo menos as pessoas consideravam simples.

Algum tempo depois, comecei a tentar racionalizar as coisas e situações. Tinha medo, na verdade pavor, de falar com as pessoas. Comecei a achar que isso se devia ao fato de não saber como fazer isso. É como se você vagasse pela vida a bordo de uma espaçonave e, à sua frente, tem um painel com centenas de botões e luzes piscantes, e você não tem a menor ideia de como operar aquilo. Numa situação assim, pensei, o melhor a se fazer é observar o que as outras pessoas fazem e tentar fazer igual.

Determinada situação, encontrei uma amiga da faculdade alguns anos depois de formados. Tracei um pré-roteiro de diálogo e o coloquei em prática. “Como você está?” “E fulano, tem visto ele?” “Nossa, sério mesmo?”. Sempre com um olhar compenetrado e a testa franzida como se realmente quisesse saber de tudo aquilo (e não me leve mal, gosto das pessoas, sinto empatia, me preocupo, só não entendia como elas eram capazes de conversar entre si). Quando ela se despediu, comentou “Nossa, como você está diferente, mais falante”.

Naquele dia, fui para casa com um enorme sentimento de satisfação.

Já outro dia, encontrei na rua um efêmero colega de trabalho que considerava, aqui entre nós, o estereótipo mais completo do que seria um cara chato. Aquela pessoa que não para de falar, te pega pelo braço etc. Resolvi replicar a experiência. Perguntei como estava, onde trabalhava, devo ter feito “n” comentários sobre o clima, o trânsito etc. etc., de tal forma que foi ele quem se viu obrigado a arrumar uma desculpa para sair fora. Senti-me de novo imensamente satisfeito.

Um incômodo, porém, começou a se apossar de mim. Não estava sendo eu. Estava sendo uma farsa. Mas era melhor daquela forma. Porque, mesmo não entendendo o painel da nave, a fazia se mover.

Um dia assisti a uma animação que se chama Mary and Max, que ficou bastante conhecido por tratar da síndrome de Asperger. Hoje em dia já se fala sobre isso na mídia, mas na época penso que não era assim. Eu pelo menos nunca tinha ouvido falar. Senti uma certa identificação com o personagem: um apego demasiado à rotina, literalidade, ansiedade e pânico por qualquer tipo de mudança, dificuldade com interações sociais ou em demonstrar sentimentos, essas coisas.

Curioso, fiz o que qualquer pessoa sensata faria hoje em dia: fui buscar informação na Internet. Caí num vídeo sobre autismo e Asperger, com crianças num centro especial de cuidados para pessoas especiais. E as crianças eram visivelmente autistas, quero dizer, não conseguiam se disfarçar como eu provavelmente fazia. Deixei de lado o tema por um tempo.

Pouco tempo depois, tive a sorte, ou o azar, de ver um outro vídeo na Internet. Era um jovem rapaz que tinha Asperger, mas, como explicava, havia níveis e níveis dessa síndrome, e a dele era relativamente “baixa”. Quer dizer, era capaz de ter uma vida relativamente normal, seja lá o que isso signifique. A identificação foi total e absoluta. Os mesmos problemas, os mesmos impasses.

Em outra ocasião, uma garota me chamou para ajudá-la em certas tarefas domésticas. Apareci em seu apartamento munido de martelo e furadeira. Pelas tantas, perguntou-me se trazia preservativos. Respondi-lhe: “Não ué, você me chamou para fazer furos, trouxe martelo”. Ao se repetir esse tipo de situação e ver que eu entendia tudo de forma mais literal que as outras pessoas, ela mesma me perguntou se eu tinha Asperger. Isso reforçou minha percepção de que não era só coisa da minha cabeça.

Tomei, então, uma firme decisão: iria procurar um médico para ter um diagnóstico preciso. Já me imaginava com um papel na mão, timbrado e assinado por um médico, jogando na frente do meu pai e dizendo: “É, o senhor tem razão, sou mesmo pancado”. Já me imaginava mais leve e livre da culpa das vezes que fui tachado de relapso, letárgico, sonso. Da culpa de projetos e sonhos não realizados ou abandonados pela metade. Mas, quase ao mesmo tempo, pensei: “O que isso vai mudar?”. Meu pai já não é o mesmo que há 20 anos. O passado não vai mudar e tudo o que conseguiria fazer, talvez, seria transferir esse sentimento de culpa a outra pessoa.

Resolvi não pensar mais nisso. Representar personas que a sociedade espera que representemos. Não seria isso o que, de certa forma, todos fazem?

Tenho completa aversão a livros de autoajuda. Não acho que podemos ser tudo aquilo que queremos. Eu queria ter 1,82m, olhos verdes e porte atlético. Mas jogamos com os dados que a vida nos dá.

Ainda tento manejar o painel da espaçonave imitando os outros. Mas me olho cada vez menos no espelho, me identifico cada vez menos também com o nome impresso na conta de luz e não acho que minha idade ou profissão sejam definidores de quem realmente seja. E, mais que isso, começo a questionar a própria existência de uma “essência” que constitua nossa individualidade ou coisa que o valha. E começo a achar que, talvez, possamos dar o nosso próprio sentido e funções a alguns dos botões do painel. Talvez.

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