segunda-feira, 17 de setembro de 2018

“Às vezes, um charuto é só um charuto.”

No dia 6 de maio, Sigmund Freud teria completado 121 anos. Esqueci. Na verdade, não esqueci. O problema é que quase nunca sei em que dia estamos. Vez ou outra, ao longo do dia, tenho de olhar para o cantinho inferior direito do computador. Acho que nem Freud explica. Talvez o transtorno, a privação de sono... Bom, o assunto não é esse.

Já se passaram dois dias, mas acho que o post é válido. Para não demorar mais e porque Freud vai aparecer mais vezes por aqui com certeza, reproduzo o “Prefácio para as cinco lições de psicanálise”*, de Durval Marcondes, escrito em 1931. O mérito do trabalho de Marcondes foi ter traduzido “Cinco Lições” diretamente do alemão, pois há polêmicas sobre a edição Standard brasileira, de onde tirei este prefácio, em que a maioria dos textos foi traduzida do inglês. Trata-se da tradução de cinco palestras de Freud, proferidas em alemão, na Clark University, nos Estados Unidos. Marcondes, professor de Psicologia Clínica da USP e ex-presidente da Associação Brasileira de Psicanálise, falecido em 1981, recebeu uma carta de próprio punho de Sigmund Freud em agradecimento pela tradução brasileira, em 18 de janeiro de 1932.

Gostando ou não, com ou sem críticas, não se pode negar que Freud abriu as portas para muito do que conhecemos da psique humana. Até mesmo para aqueles que se opuseram diametralmente a ele. Vamos ao texto.


*Para ler as “Cinco Lições” e outros textos: este prefácio foi extraído de “Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira...”. vol. XI, Ed. Imago: Rio de Janeiro, 2006, pp. 20-23.

E cuidado com o que você lê por aí. “No Facebook, atribuem tantas frases a mim que daria para reformular a teoria psicanalítica quatro vezes por semana.” (FREUD, S.)


Carta de Freud a Durval Marcondes agradecendo pela tradução
PREFÁCIO PARA AS CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE, DE DURVAL MARCONDES

As lições que se seguem foram pronunciadas em língua alemã por Freud, em 1909, na “Clark University” em Worcester (Estados Unidos), por ocasião do vigésimo aniversário dessa instituição e a convite de seu presidente, o eminente psicólogo Stanley Hall.[1] Elas constituem a primeira exposição sistemática que Freud fez de sua teoria e, embora não envolvam as aquisições mais recentes da psicanálise, são, a meu ver, a leitura mais apropriada para quem aborda pela primeira vez a obra do mestre.

A psicanálise estava longe de ter, naquela época, a importância e o renome que hoje desfruta. Se é exato que já em 1907 ela era estudada e utilizada pelo notável psiquiatra Bleuler e por seus assistentes, na clínica de Zurique; e que já em 1908 se reunia em Salisburgo o primeiro congresso psicanalítico internacional, nem por isso as novas ideias eram bem recebidas nas rodas científicas oficiais, onde as afirmações sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses esbarravam quase sempre com os preconceitos de uma falsa moral. Daí a alta significação para a jovem doutrina teve a sua consagração na cátedra de Worcester. “Na Europa, escreveu Freud, eu me sentia como um proscrito; ali me via acolhido pelos melhores como um igual. A psicanálise não era mais, portanto, uma concepção delirante, mas se tornara uma parte preciosa da realidade.”[2]

Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia, tendo passado aos quatro anos para Viena, onde fez seus estudos. Formou-se em Medicina em 1881. Ainda estudante, entrou, em 1876, a trabalhar no laboratório de fisiologia de Ernst Brücke, sob cuja direção efetuou pesquisas de histologia nervosa. Depois de formado, ingressou no serviço do grande psiquiatra Theodor Meynert, tendo-se dedicado, por essa época, a estudos de neuroanatomia. Antes de entregar-se definitivamente à investigação psicanalítica, publicou vários trabalhos sobre afecções orgânicas do sistema nervoso, tais como as afasias e as encefalopatias infantis. Entre 1885 e 1886, foi discípulo de Charcot, em Paris, e acompanhou, em 1889, em Nancy, as experiências de Bernheim sobre o hipnotismo. A influência de ambos nas concepções iniciais da teoria psicanalítica poderá ser bem avaliada nestas “Cinco Lições”.

Essas concepções tiveram sua primeira expressão na nota prévia que Freud publicou em 1893 com o Dr. Breuer, intitulada “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos”, a que se seguiu, em 1895, o livro, também em colaboração, “Estudos Sobre a Histeria”.

* * *

A vida de Freud tem sido ela uma luta incessante pela verdade. Exposto, pela sua coragem de afirmar, ao anátema das escolas psiquiátricas dominantes, preferiu suportar por muito tempo a dureza de um verdadeiro exílio intelectual a ceder naquilo que era o honesto resultado de sua investigação. Desde o começo de sua carreira profissional, o amor à certeza científica fê-lo prejudicar deliberadamente a clínica em início pela tenacidade em pesquisar em seus doentes o exato determinismo dos sintomas. Sua obra fundamenta-se na mais demorada e paciente observação dos fatos. Há cerca de quarenta anos que ele se dedica, diariamente, a oito, nove, dez, às vezes mesmo onze análises de uma hora cada uma,[3] podendo-se, portanto, dizer que passou toda uma existência debruçado sobre a alma dos neuróticos. O impiedoso rigor para com as próprias convicções chegou, às vezes, ao ponto de fazê-lo adiar por vários anos a publicação de seus trabalhos até que a experiência ulterior proporcionasse a confirmação de suas descobertas. “Minha A Interpretação dos Sonhos”, diz ele, “e meu Fragmento de uma Análise de um Caso de Histeria (o caso de Dora) foram retidos por mim – se não pelos nove anos aconselhados por Horácio – em todo caso por quatro ou cinco anos antes que me decidisse a publicá-los.”[4]

Compreende-se, portanto, que quem adquiriu uma visão nova dos fatos à custa de tão penosos sacrifícios se tenha recusado a mudar de ideia ante a pressão de uma crítica partidária, que se não baseia na verificação objetiva. Essa justificada intransigência de Freud foi, não obstante, tachada de dogmatismo, o que não impede, porém, que novos dados da observação direta e imparcial confirmem e completem cada vez mais as suas conclusões.

“Os homens são fortes enquanto representam uma ideia forte.”[5] Em sua aureolada velhice, Freud assiste presentemente ao triunfo gradual e seguro de seus princípios, cujo enunciado já não constitui uma blasfêmia. Eles conquistam paulatinamente o lugar que lhes cabe na ciência dos fenômenos espirituais e se vão tornando aceitos pelos mais legítimos representantes da psiquiatria moderna. Existe, na verdade, quem insista em rejeitar as consequências teóricas da psicanálise sem lhe conhecer sequer os métodos. Mas aos poucos irão chegando os últimos retardatários. “Quem sabe esperar não necessita fazer concessões.”[6]

São Paulo, novembro de 1931
Durval Marcondes

NOTAS:
[1] Freud foi acompanhado nessa viagem à América do Norte por dois de seus discípulos, os psicanalistas C. G. Jung e S. Ferenczi. Jung separou-se depois de Freud, fundando uma escola psicológica dissidente.
[2] S. Freud. “Selbst Darstellung. Die Medizin der Gegenwart in Selbsdarstellungen”. F. Meiner, Leipzig, 1925.
[3] Stefan Zweig. “Sigmund Freud”. Artigo publicado em “Les Nouvelles Littéraires”, ano II, 466, de 19-9-1931.
[4] “The International Journal of Psycho-Analysis”. Vol. VIII, p. 134.
[5] S. Freud. “Obras completas”. Edição espanhola, vol. XII, p. 198.
[6] Ob. cit., vol. IX, p.36.

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