POR LU CANDIDO ::
Este texto é também sobre preconceito. É uma tentativa quase impossível de fazer com que as pessoas saibam o que sentimos e o quanto podemos ser fortes.
Quando esta crise começou, há cerca de um mês, achei que não ia conseguir. Tudo que eu pensava era na grande derrota de me deixar cair de novo depois de mais de quatro anos. Como se fosse possível escolher. Nos primeiros dias, lembrei-me de tudo que tinha acontecido, da dor insuportável, do preconceito, das pessoas que perdi no caminho, da vergonha e até dos 30 quilos que ganhei em três anos de crise intermitente.
Foi num desses momentos de lembranças que consegui inverter a equação: não, eu não tinha caído depois de resistir tanto tempo. Eu tinha resistido durante longos quatro anos sem crise. E comecei a resgatar tudo pelo que eu tinha passado, agora com uma perspectiva diferente, a de alguém que aprendeu a sofrer e a sentir a pior dor que um ser humano pode imaginar.
Andrew Solomon, em seu livro O Demônio do Meio Dia, referindo-se a um carvalho de sua infância, diz: “Em 20 anos, uma enorme trepadeira grudara-se a essa sólida árvore e quase a sufocara. Era difícil dizer onde a árvore terminava e a trepadeira começava. Esta enrolara-se tão completamente em torno da estrutura dos galhos da árvore que suas folhas à distância pareciam ser as folhas da árvore. Só bem de perto se podia ver como haviam sobrado poucos ramos vivos, e quão poucos e desesperados gravetos brotavam do carvalho, espetando-se como uma fileira de polegares do tronco maciço, suas folhas continuando o processo de fotossíntese ao modo ignorante da biologia mecânica”.
A depressão é a trepadeira. O carvalho é meu cérebro. As folhas são os neurônios perdidos em meio a substâncias que não sabem como se mover entre eles e, ainda assim, estão vivos.[1] Foi então que decidi que todos os dias eu ia arrancar aqueles ramos de trepadeira que insistiam em brotar no meu cérebro. E, assim, eu sobrevivo um dia, depois outro e depois outro... Em cada dia de sobrevivência, eu procuro encontrar o sentido perdido da vida. Não me afastei totalmente do trabalho, procuro comer mesmo sem vontade, tento manter o mínimo de organização ao meu redor, entre outras coisas que não lembro, porque o dia está acabando e a trepadeira está começando a brotar novamente. Criei esta página e estou tentando resgatar uma das coisas que me era mais cara antes da doença: a escrita.
Tem dias que não consigo. Nesses dias, não consigo levantar da cama. O simples pensar que alguém pode me ver dói. Dói emocional e fisicamente. Não é algo fácil de se entender para alguém que nunca tenha passado por isso. Exige alto grau de abstração. Então, tento me preservar, não forçar a barra comigo mesma, consciente das consequências do dia ou dos dias seguintes: quanto mais aquilo durar, mais difícil vai ser arrancar os galhos da trepadeira e chegar às suas raízes. Em primeiro lugar, vou ter que afastar a culpa. Depois, encarar que pessoas que estavam comigo podem não estar mais lá quando eu voltar. E saber das possíveis implicações materiais, como atrasar uma conta e até perder o emprego, por exemplo. Não seria a primeira vez.
Este texto é sobre preconceito
Na crise anterior – e nas que eu tinha conseguido estancar até então –, tinha um medo enorme de ficar incapaz quando, na verdade, eu já estava incapacitada. Temporariamente, mas estava. Mais do que isso, tinha um medo terrível de que as pessoas me rotulassem como incapaz para sempre. E nenhuma tentativa de esconder isso deu certo, meu corpo não deixava.
Hoje, também tenho medo. Não sei bem se é preconceito, ignorância, maldade. No fim, acho que acaba tudo se misturando. “A ignorância é vizinha da maldade”, diz o provérbio árabe. Eu também fico pensando até que ponto isso está no mundo real ou só na minha mente. Talvez nos dois, em cada um a seu jeito. Todo o textão acima foi para preparar este debate. Meu medo hoje é outro: o preconceito pela incompreensão.
Outro dia, conversava com um amigo e fiz uma piada sem graça. Então, comentei: “até deprimida eu falo merda”. Acho que ele compreendeu. Mas todo mundo compreende? Como explicar às pessoas ao redor que estou doente se não estou chorando o tempo todo? Como mostrar que se está doente sem estar de cama o tempo todo? Como mostrar que se está doente quando se consegue sorrir? Como explicar um dia de cada vez? Como explicar a lentidão, a falta de memória e de concentração, as tremedeiras, o pânico de saber que pessoas vão me ver, o medo de ter uma crise de ansiedade a qualquer momento, em qualquer lugar? Como explicar que “ter consciência para ter coragem” não é só uma letra bonita de uma música? Como explicar que só consigo viver desse jeito porque todo santo dia tenho que fazer uma força sobre-humana para arrancar os galhos da trepadeira e fazer coisas que quase nunca quero fazer e que nem sempre fazem sentido, desde tomar banho até cumprimentar alguém?
Tenho travado uma batalha constante contra a doença e contra mim mesma neste último mês. É uma crise infinitamente diferente das anteriores e muito complexa. Lembro exatamente de uma sessão de terapia, perto do Natal de 2014, em que minha psicóloga me trouxe uma palavra nova: resiliência. Não que eu nunca tivesse ouvido, mas, na minha ignorância, nunca achei que ela pudesse sair da física, da teoria das molas etc. e ir parar na Psicologia. Então descobri que talvez eu seja uma mola.
Na época, escrevi num texto: “[resiliência] É um conceito roubado da física. É uma propriedade de certos materiais que conseguem acumular energia para sobreviver a traumas e rupturas. Após o trauma, o material volta à sua forma original. (...) Transportando para a Psicologia, significa acumular forças para tomar decisões em momentos difíceis sem por isso entrar em crise, quebrar, surtar.”
É, acho que às vezes sou uma mola. E é aí que mora uma parte dos meus problemas. É como se eu tivesse separado o corpo da mente, mas um ainda atua sobre o outro. Há tristeza, há confusão, há fraqueza, há falta de sentido. Ninguém pode imaginar o que se passa na minha cabeça. Ninguém sabe a dor que entremeia meus espasmos de vida.
Sei exatamente como vou estar daqui um tempo se eu não tiver ações conscientes para produzir a dopamina e outros neurotransmissores que nem sempre os remédios dão conta. Remédios não fazem milagres. Daí a importância da terapia, das atividades físicas. Eu não quero chegar lá, não quero chegar naquele buraco nunca mais. A dor mais profunda que já senti, a última dor que alguém pode sentir. Não está descartada a possibilidade de chegar lá, eu sei. Nunca estará. Mas eu vou lutar enquanto tiver força.
E agora que eu sei, não me culpo. Eu sei a dor de sentar na cama mesmo quando todas as forças parecem ter escapado. A dor que não se explica e não se entende. É preciso força e coragem para esticar o braço até a caixinha de remédios que vão me dar vida, mas, ao mesmo tempo, enjoo, visão embaçada, uns quilos a mais ou a menos. A coragem de não sair da cama quando meu corpo exige mais do que a minha mente pode dar. Como já disse em outro momento, não se trata de querer: é um não poder.
Às vezes, somos obrigados a pôr a cara para fora. Ter de enfrentar o mundo e saber que não precisamos rir nem sorrir, que não precisamos ser alegres o tempo todo, mas que também não precisamos ter a aparência da derrota. Que não precisamos fingir que está tudo bem e que temos o direito de dizer “eu não estou bem”, “eu não consigo”, mas também de andar e sorrir. Coragem para dizer não, hoje não dá. Amanhã, talvez.
[1] Andrew Solomon se refere à doença depressão. Quimicamente, meu processo é diferente, embora os sintomas sejam semelhantes na depressão bipolar. Também acho que é determinante dizer que nunca abandonei o tratamento com remédios e terapia.
Para ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=oScaaauYOBM
Este texto é também sobre preconceito. É uma tentativa quase impossível de fazer com que as pessoas saibam o que sentimos e o quanto podemos ser fortes.
Quando esta crise começou, há cerca de um mês, achei que não ia conseguir. Tudo que eu pensava era na grande derrota de me deixar cair de novo depois de mais de quatro anos. Como se fosse possível escolher. Nos primeiros dias, lembrei-me de tudo que tinha acontecido, da dor insuportável, do preconceito, das pessoas que perdi no caminho, da vergonha e até dos 30 quilos que ganhei em três anos de crise intermitente.
Foi num desses momentos de lembranças que consegui inverter a equação: não, eu não tinha caído depois de resistir tanto tempo. Eu tinha resistido durante longos quatro anos sem crise. E comecei a resgatar tudo pelo que eu tinha passado, agora com uma perspectiva diferente, a de alguém que aprendeu a sofrer e a sentir a pior dor que um ser humano pode imaginar.
Andrew Solomon, em seu livro O Demônio do Meio Dia, referindo-se a um carvalho de sua infância, diz: “Em 20 anos, uma enorme trepadeira grudara-se a essa sólida árvore e quase a sufocara. Era difícil dizer onde a árvore terminava e a trepadeira começava. Esta enrolara-se tão completamente em torno da estrutura dos galhos da árvore que suas folhas à distância pareciam ser as folhas da árvore. Só bem de perto se podia ver como haviam sobrado poucos ramos vivos, e quão poucos e desesperados gravetos brotavam do carvalho, espetando-se como uma fileira de polegares do tronco maciço, suas folhas continuando o processo de fotossíntese ao modo ignorante da biologia mecânica”.
A depressão é a trepadeira. O carvalho é meu cérebro. As folhas são os neurônios perdidos em meio a substâncias que não sabem como se mover entre eles e, ainda assim, estão vivos.[1] Foi então que decidi que todos os dias eu ia arrancar aqueles ramos de trepadeira que insistiam em brotar no meu cérebro. E, assim, eu sobrevivo um dia, depois outro e depois outro... Em cada dia de sobrevivência, eu procuro encontrar o sentido perdido da vida. Não me afastei totalmente do trabalho, procuro comer mesmo sem vontade, tento manter o mínimo de organização ao meu redor, entre outras coisas que não lembro, porque o dia está acabando e a trepadeira está começando a brotar novamente. Criei esta página e estou tentando resgatar uma das coisas que me era mais cara antes da doença: a escrita.
Tem dias que não consigo. Nesses dias, não consigo levantar da cama. O simples pensar que alguém pode me ver dói. Dói emocional e fisicamente. Não é algo fácil de se entender para alguém que nunca tenha passado por isso. Exige alto grau de abstração. Então, tento me preservar, não forçar a barra comigo mesma, consciente das consequências do dia ou dos dias seguintes: quanto mais aquilo durar, mais difícil vai ser arrancar os galhos da trepadeira e chegar às suas raízes. Em primeiro lugar, vou ter que afastar a culpa. Depois, encarar que pessoas que estavam comigo podem não estar mais lá quando eu voltar. E saber das possíveis implicações materiais, como atrasar uma conta e até perder o emprego, por exemplo. Não seria a primeira vez.
Este texto é sobre preconceito
Na crise anterior – e nas que eu tinha conseguido estancar até então –, tinha um medo enorme de ficar incapaz quando, na verdade, eu já estava incapacitada. Temporariamente, mas estava. Mais do que isso, tinha um medo terrível de que as pessoas me rotulassem como incapaz para sempre. E nenhuma tentativa de esconder isso deu certo, meu corpo não deixava.
Hoje, também tenho medo. Não sei bem se é preconceito, ignorância, maldade. No fim, acho que acaba tudo se misturando. “A ignorância é vizinha da maldade”, diz o provérbio árabe. Eu também fico pensando até que ponto isso está no mundo real ou só na minha mente. Talvez nos dois, em cada um a seu jeito. Todo o textão acima foi para preparar este debate. Meu medo hoje é outro: o preconceito pela incompreensão.
Outro dia, conversava com um amigo e fiz uma piada sem graça. Então, comentei: “até deprimida eu falo merda”. Acho que ele compreendeu. Mas todo mundo compreende? Como explicar às pessoas ao redor que estou doente se não estou chorando o tempo todo? Como mostrar que se está doente sem estar de cama o tempo todo? Como mostrar que se está doente quando se consegue sorrir? Como explicar um dia de cada vez? Como explicar a lentidão, a falta de memória e de concentração, as tremedeiras, o pânico de saber que pessoas vão me ver, o medo de ter uma crise de ansiedade a qualquer momento, em qualquer lugar? Como explicar que “ter consciência para ter coragem” não é só uma letra bonita de uma música? Como explicar que só consigo viver desse jeito porque todo santo dia tenho que fazer uma força sobre-humana para arrancar os galhos da trepadeira e fazer coisas que quase nunca quero fazer e que nem sempre fazem sentido, desde tomar banho até cumprimentar alguém?
Tenho travado uma batalha constante contra a doença e contra mim mesma neste último mês. É uma crise infinitamente diferente das anteriores e muito complexa. Lembro exatamente de uma sessão de terapia, perto do Natal de 2014, em que minha psicóloga me trouxe uma palavra nova: resiliência. Não que eu nunca tivesse ouvido, mas, na minha ignorância, nunca achei que ela pudesse sair da física, da teoria das molas etc. e ir parar na Psicologia. Então descobri que talvez eu seja uma mola.
Na época, escrevi num texto: “[resiliência] É um conceito roubado da física. É uma propriedade de certos materiais que conseguem acumular energia para sobreviver a traumas e rupturas. Após o trauma, o material volta à sua forma original. (...) Transportando para a Psicologia, significa acumular forças para tomar decisões em momentos difíceis sem por isso entrar em crise, quebrar, surtar.”
É, acho que às vezes sou uma mola. E é aí que mora uma parte dos meus problemas. É como se eu tivesse separado o corpo da mente, mas um ainda atua sobre o outro. Há tristeza, há confusão, há fraqueza, há falta de sentido. Ninguém pode imaginar o que se passa na minha cabeça. Ninguém sabe a dor que entremeia meus espasmos de vida.
Sei exatamente como vou estar daqui um tempo se eu não tiver ações conscientes para produzir a dopamina e outros neurotransmissores que nem sempre os remédios dão conta. Remédios não fazem milagres. Daí a importância da terapia, das atividades físicas. Eu não quero chegar lá, não quero chegar naquele buraco nunca mais. A dor mais profunda que já senti, a última dor que alguém pode sentir. Não está descartada a possibilidade de chegar lá, eu sei. Nunca estará. Mas eu vou lutar enquanto tiver força.
E agora que eu sei, não me culpo. Eu sei a dor de sentar na cama mesmo quando todas as forças parecem ter escapado. A dor que não se explica e não se entende. É preciso força e coragem para esticar o braço até a caixinha de remédios que vão me dar vida, mas, ao mesmo tempo, enjoo, visão embaçada, uns quilos a mais ou a menos. A coragem de não sair da cama quando meu corpo exige mais do que a minha mente pode dar. Como já disse em outro momento, não se trata de querer: é um não poder.
Às vezes, somos obrigados a pôr a cara para fora. Ter de enfrentar o mundo e saber que não precisamos rir nem sorrir, que não precisamos ser alegres o tempo todo, mas que também não precisamos ter a aparência da derrota. Que não precisamos fingir que está tudo bem e que temos o direito de dizer “eu não estou bem”, “eu não consigo”, mas também de andar e sorrir. Coragem para dizer não, hoje não dá. Amanhã, talvez.
[1] Andrew Solomon se refere à doença depressão. Quimicamente, meu processo é diferente, embora os sintomas sejam semelhantes na depressão bipolar. Também acho que é determinante dizer que nunca abandonei o tratamento com remédios e terapia.
Para ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=oScaaauYOBM
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