segunda-feira, 17 de setembro de 2018

POR LU CANDIDO :: 
Aconteceu há uma semana. Junto com mais umas 40 pessoas, tive de descer forçada do ônibus. O motorista se recusou a seguir viagem caso um homem não descesse. Esse homem estava brigando com algumas pessoas imaginárias, utilizando arsenal de palavrões, alguns que nem eu conhecia. A maioria dos xingamentos era machista e homofóbica. Não vou repetir as palavras: deixo a quem ler o direito à livre imaginação.



Como o homem se recusou a descer, o motorista desligou o motor e obrigou todo mundo a descer. Teria sido louvável a atitude do motorista, não fosse por um detalhe: o homem era um doente mental, desses de atar em poste, que a gente encontra pelas ruas de qualquer grande cidade, potencializado pelo fato de estarmos em São Paulo.

Os passageiros, obrigados a descer, se indignaram. Eu, inclusive. Chamaram o motorista de louco, maluco, que ele era pior que o tal homem, desequilibrado e que era melhor não seguir viagem com ele daquele jeito. Que o motorista tinha de entender que era um doente que precisava de tratamento.

Estava todo mundo com pena do homem e raiva do motorista. O motorista, com uma cara de ódio, parecia nem ouvir. Repetia, indiferente, que, com o homem – que se recusava a descer – não seguiria. Só disse que ia chamar a polícia para tirá-lo de lá.

Com o corredor de ônibus bloqueado, os que vieram atrás abriram as portas, e todos fomos embora sem saber o desfecho da história. Logo que sentei, comecei a escrever este texto – que já não é mais o mesmo texto. Pensei na falta de compaixão do motorista. Pensei que o homem, obviamente, precisava de tratamento. Pensei na polícia que, como é de costume, o tiraria de dentro do veículo na porrada e jogaria em algum lugar.

Mas aí...

Duas frases depois, senti um curto circuito no cérebro. Eu mesma já não sabia a quem dirigir a minha própria compaixão. E o motorista? Quem pensou no motorista? E se o tal homem, ainda que sem saber o que estava fazendo, o tivesse atacado enquanto dirigia?

Um dia antes, tinha sido aprovada a reforma trabalhista. O motorista se despedia de direitos elementares. O salário dele é baixo. Ele fica exposto a todo tipo de situação de insegurança. Já tive a oportunidade de fazer uma matéria com trabalhadores rodoviários e conheço um pouquinho a rotina deles. O nível de estresse a que submetem é inimaginável. Quem pensou nesse sujeito?

E ainda tinha os passageiros. Àquele horário, provavelmente voltavam cansados do trabalho. Queriam chegar logo, e um incidente aparentemente besta atrasaria o descanso, a aula, o encontro com a família ou qualquer compromisso que tivessem.

E sabe o que é pior? Eu segui a manada. Entrei no ônibus, segui meu destino como se nada tivesse acontecido. Pensei: por que não fiquei lá? Por que não fiz nada? Eu poderia mesmo ter feito alguma coisa? Provavelmente, não. Sou apenas mais uma figurante no elenco daquele filme bizarro. Eu nunca vou saber...

“Amanhã ou depois, talvez eu nem lembre disso”, escrevi naquele momento. Passei uma semana pensando. Alguns podem chamar de ruminação. Eu prefiro chamar de reflexão.

Eu penso demais? Ou o mundo em que vivemos agora é uma merda mesmo? Escolho a segunda opção.

Uma sociedade que permite que pessoas vivam permanentemente no limiar entre a lucidez e a loucura; que não é capaz de tratar de seus doentes; que permite que pessoas se submetam a altos níveis de estresse e insegurança por tão pouco, não por algo que elas escolheram, mas porque necessitam para (sobre)viver; que permite que percamos o controle sobre nós mesmos a qualquer momento; é uma sociedade que não merece existir.

(A ironia disso tudo é que estava voltando da terapia. Antes do incidente, eu lia tranquilamente um livro do Freud para um seminário de psicanálise que faria à noite – e fiz. O que me separa da loucura?)


** O título é uma referência ao conto O Alienista, de Machado de Assis. “Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.”




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