quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

POR WALTER M.::
Um segurança com uma barra de ferro persegue o cãozinho acuado. Minutos depois, o cachorro está deitado, arrastando-se sob manchas de sangue, agonizando. Confesso que não consegui assistir às imagens por muito tempo. Acredito que muita gente não tenha conseguido também. A morte do cãozinho no Carrefour de Osasco causou uma enorme comoção, e não foi por menos. Foi algo sádico, monstruoso e torpe.

Antes que você ache o título desse texto ultrajante ou piegas, deixe-me explicar.

Junto à comoção que se espalhou pelas redes sociais, muitos questionavam: por que tanto alarde por conta de um animal, sendo que agora mesmo temos inúmeras crianças abandonadas pelas ruas das grandes cidades, desalentadas, passando por situações parecidas ou até piores que o cachorro abandonado no supermercado? Num primeiro momento, achei esse tipo de reação despropositada. Mas busquei entender.

A priori, não deixa de ser um questionamento legítimo, acredito. O cão friamente abatido em Osasco não teve consciência do que ocorria com ele. É incapaz de discernir a situação e saber por que sofria. Uma criança abusada e abandonada na calçada, sim.

O que acontece, então? É interessante aqui remontar ao processo de domesticação, em especial a dos cães a partir dos lobos selvagens. Para o perigoso e predador lobo virar o poodle saltitante com lacinho rosa na cabeça durou no mínimo 15 mil anos. E o cachorro aqui tem algo de especial, pois foi o primeiro animal domesticado pelo homem. A princípio, para caça e o cuidado de rebanhos. A seleção dos animais mais sociáveis, dóceis, e a relação de interdependência e sobrevivência estreitaram ainda mais o vínculo entre o animal e o ser humano por esses milênios até virarem o “melhor amigo do homem”.

Pois bem, deixemos a narrativa fria da ciência para trás. O que, em geral, buscamos num animalzinho de estimação? Não precisamos mais caçar, a maioria não tem ovelhas para cuidar e mesmo os egípcios já não acreditam que os gatos sejam deuses (embora eu conheça muitos que sejam ainda tratados como tais em apartamentos). Posso estar errado, mas creio que, mais do que companheirismo, buscamos amor. O amor incondicional daquele cachorrinho que te espera todo final do dia. Que pula arfando desesperadamente sem você ter feito nada especial. Apenas por ser você. Buscamos empatia.

É muito conhecida a história do cãozinho Hachiko, no japão dos anos 20. Pontualmente, o cão esperava seu dono voltar do trabalho na estação de trem de Shibuya, no subúrbio de Tóquio. Até que o dono, um professor universitário, teve um AVC e morreu. Por anos a fio, Hachiko continuou o esperando em frente à estação, mantendo a esperança de o dono aparecer a cada final de tarde, até o último de seus dias. A história de amor e fidelidade foi eternizada numa estátua de bronze que continua até hoje lá.

Se podemos explicar esse comportamento devido ao instinto moldado por anos de seleção, como explicar o fascínio que essa história nos provoca? Para mim, buscamos nos animais domesticados, e nos cães em especial, a inocência do amor incondicional, a empatia intrínseca dos seres vivos. Ou a busca por isso. Ou, mais precisamente, a capacidade de amar e de sermos amados, sem nada em troca. É a projeção de nossa capacidade de desenvolvermos esses sentimentos.

Quando criança, minha vó degolava galinhas vivas para o almoço de domingo. Eu protestava, chorava e pedia para ela não fazer aquilo. Ela me expulsava aos gritos, e mandavam me tirar dali, pois a carne ficaria dura se alguém sentisse dó da infeliz criatura de penas. Quando crescemos, somos ensinados que existem os animais para comer e os que são para serem criados, pois “deus quis assim”.

E esses animais escolhidos pelo homem, muitas vezes, são os únicos que são capazes de nos amar simplesmente pelo que somos, sem pré-julgamentos ou discriminação. Como na música de Vinicius, em que Alfredo se mata por solidão “Porque ninguém o queria/Ninguém lhe dava atenção/Porque ninguém mais lhe abria/As portas do coração”. Alfredo, que era “gente sem vez para amar/Gente sem mão para dar (...) Gente com os olhos no chão/Sempre pedindo perdão”, tinha como única companhia de vida um papagaio e um gato, que morreram com ele.

Quando lamentamos a morte cruel do cãozinho em Osasco, assim, sofremos com a perda da nossa capacidade de amar e sermos amados. Sentimento humano sim, social e historicamente construído também, mas não por isso menos humano ou menos real. É como se parte de nós morresse, a que busca a inocência do amor “puro” e da empatia. Essa parte mais nobre.

Acho realmente, que o perverso crime ocorrido no Carrefour deve chocar sim. Se não nos chocássemos, se não nos indignássemos, estaríamos um passo atrás do processo de civilidade.

E quando finalmente aprendermos a nos chocar também, e com a mesma intensidade, com as crianças abandonados, o sofrimento indizível dos miseráveis, com a injustiça perpetrada contra os oprimidos e mais vulneráveis, com a exploração, aí sim, tornar-nos-emos, com o perdão da mesóclise, seres humanos muito mais plenos. E cenas como a que vimos esses dias não mais se repetirão.


Walter M. mora em São Paulo, é jornal(eiro)ista, não é tão jovem e ainda não chegou a ser velho. Atualmente se ocupa nas horas vagas na busca do manual de instruções da vida.


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