POR WALTER M.::
Não sei quanto a você, mas esse período sempre me causou um profundo incômodo. E se tem algo que percebi nesses tempos é que a angústia é um moto-contínuo, o utópico motor perpétuo. Porque ele se alimenta dele mesmo. Você se incomoda com algo, e fica incomodado pelo incômodo que sente, e assim por diante.
Pense, então, nas festas de final de ano. No Natal, no Ano Novo, encontros familiares, festas do trabalho... Fotos e sorrisos forçados nas redes sociais. Por que diabos ficar mal quando, pelo menos aparentemente, as pessoas em geral exalam felicidade e otimismo? Se você se sente deslocado com isso, quero te dizer que não está só. Mais do que isso, é algo muito mais comum do que pode parecer. O que acontece, acredito eu, é um certo sentimento de culpa de se admitir algo assim. Durante muito tempo, achei que fosse um sentimento de inveja mesquinha por não conseguir admitir uma aparente felicidade alheia, tão plena que acreditava nunca poder atingir. O que, por sua vez, provocava ainda mais culpa.
E é uma situação difícil, convenhamos. A pressão permanente para que sejamos alegres e felizes recrudesce nesse período do ano. É um verdadeiro bombardeio midiático que transpassa as classes sociais. Dizem a você, todos os dias, toda hora: você tem a obrigação de ser feliz. E se não é, é um fracassado. Evidentemente, no capitalismo, felicidade é sinônimo de sucesso profissional, reconhecimento e, claro, dinheiro. O pacote de felicidade devidamente embalado e oferecido nos comerciais de TV.
Se você não se encaixa nisso, então, você fracassou, não fez certo. E se você nem ao menos se esforça para atingir esse estado, você não só é um fracassado, como um verdadeiro monstro imoral. Ou um doente.
E, é claro, não se encaixar nessa condição te joga ainda mais para baixo.
Há muitas razões para se sentir assim. Uma delas é que o final do ano marca, socialmente, um período de transição, como um fechamento de um ciclo. E isso, por si só, traz a inevitável pressão por um balanço do período passado. Um balanço pessoal e quase sempre cruel. O que, por sua vez, traz frustração e ansiedade de forma quase inexorável.
Para mim, esses rituais sociais de transição sempre foram um problema. Aniversário, final de ano são seguidos por uma profunda melancolia que ultrapassa o nível de ansiedade. Daí que desenvolvi mais uma tese de botequim com a superficialidade típica das teses de botequins, embora não seja frequentador assíduo dos botequins.
Para alguns, e me encaixo nesses alguns, há uma forte tendência ao apego a qualquer coisa que pareça minimamente estável. É o Jack agarrando à tábua de madeira após o naufrágio do Titanic. Tentamos nos agarrar a qualquer coisa que nos traga a ilusão de segurança, estabilidade e conforto. Como um gato dentro de uma mansão que prefere se refugiar numa caixa de sapatos.
Aniversário, ano-novo e qualquer outro ritual de transição pressupõe mudança. E, para pessoas assim, não há nada mais assustador que a mudança. E mudança traz o risco de perdermos o que temos, mesmo que o que tenhamos seja pura ilusão. O que pode criar, e geralmente cria, um paradoxo: em geral, nutrimos um forte desejo de mudança. Mas qualquer ameaça de mudança, por mínima que seja, traz consigo um pavor.
Sim, eu sei que são rituais. Sei que nada vai mudar quando der meia-noite do dia 31 para o dia 1º de janeiro. Sei que nada vai mudar quando der meia-noite de meu aniversário. Mas a simples ideia de mudança já é capaz de provocar um arrepio. Mesmo que, em tese, não tenha muita coisa a perder.
Convencer-se de que nada vai mudar nessas datas seria um bom caminho para lidar melhor com essas situações, não? Pois bem, estou me convencendo cada vez mais que não. Estranho, não é? Pois o problema, o real problema, não é a expectativa de que as coisas mudarão. Sinto que a fonte dessa angústia é justamente a ilusão de que algo permanece. De que temos algo a nos agarrar, um lugar confortável, escuro e quentinho para nos abrigar, em geral chamado de ‘esperança’. E, sinto decepcionar, mas isso não existe.
Então, ao invés de encarar ansiosamente um aniversário ou o réveillon, temeroso das mudanças que virão, tomei o caminho contrário. Penso que a cada dia, as coisas mudam. A cada hora. A cada segundo. Você não é a mesma pessoa que era quando começou a ler esse texto. Não pelo texto em si, mas pela própria condição da existência e da realidade. A impermanência é a única certeza que temos na vida. Tudo que é sólido se desmancha no ar? Sim, a todo o momento milésimo de segundo. E aceitar esse fato pode se tornar uma atitude realmente libertadora. Só a verdade é revolucionária, não é mesmo? Pois então, resta-nos celebrar o Natal, o final de ano e até o aniversário para quem conseguir, mas sem cair na armadilha mortal. O que tem de especial nesses períodos não são as datas em si ou a “esperança” de uma suposta mudança. É a relação das pessoas, a troca de afeto, o carinho mútuo. É o que acontece no presente, e essa é a única realidade que existe, ainda que isso pareça redundante.
E, finalmente, aceitar essa insegurança, esse medo e eventual angústia, convencendo-se de que não há nada de errado nisso. Você terá problemas e angústias e isso faz parte da vida, sinto-lhe dizer. Mande a culpa para a casa do caralho. Parece passividade? Também achei isso um tempo. Mas tendo a achar que reconhecer isso é que é realmente subversivo, libertador e uma atitude ativa.
Pema Chodron, uma simpática monja que escreveu um belo livro, “Quando tudo se desfaz”, fala sobre esse processo de reconhecer que não existem âncoras nas quais possamos nos agarrar. Quando tudo se desfaz e sentimos o chão se demolir sob nossos pés, temos medo, mas tão logo podemos também encontrar o verdadeiro sentido da palavra liberdade. Deixo aqui um pequeno trecho:
“Quando tudo se desintegra, somos submetidos a uma espécie de teste, e também a um certo processo de cura. Achamos que o sentido está em passar no teste e superar o problema, mas a verdade é que as situações não têm uma solução definitiva. Elas se compõem e desmoronam. E mais uma vez se compõem e desmoronam. É simplesmente assim que funciona. O processo de cura ocorre ao deixarmos existir espaço para que tudo isso aconteça: espaço para o pesar, para o alívio, para a angústia e a alegria.”
Não deixe que a ditadura artificial da felicidade lhe aprisione. Jogue seus livros de autoajuda pela janela. Seja você mesmo, com seus medos, frustrações e tudo o que lhe faz humano. Você não precisa ser feliz o tempo todo. Não precisa fingir a todo mundo que é feliz 24 horas por dia. Não precisa seguir um padrão ditado pela sociedade ou cair nessa histeria de final de ano. Nem ao menos acreditar nesses devaneios que acabou de ler.
Walter M. mora em São Paulo, é jornal(eiro)ista, não é tão jovem e ainda não chegou a ser velho. Atualmente se ocupa nas horas vagas na busca do manual de instruções da vida.
Não sei quanto a você, mas esse período sempre me causou um profundo incômodo. E se tem algo que percebi nesses tempos é que a angústia é um moto-contínuo, o utópico motor perpétuo. Porque ele se alimenta dele mesmo. Você se incomoda com algo, e fica incomodado pelo incômodo que sente, e assim por diante.
Pense, então, nas festas de final de ano. No Natal, no Ano Novo, encontros familiares, festas do trabalho... Fotos e sorrisos forçados nas redes sociais. Por que diabos ficar mal quando, pelo menos aparentemente, as pessoas em geral exalam felicidade e otimismo? Se você se sente deslocado com isso, quero te dizer que não está só. Mais do que isso, é algo muito mais comum do que pode parecer. O que acontece, acredito eu, é um certo sentimento de culpa de se admitir algo assim. Durante muito tempo, achei que fosse um sentimento de inveja mesquinha por não conseguir admitir uma aparente felicidade alheia, tão plena que acreditava nunca poder atingir. O que, por sua vez, provocava ainda mais culpa.
E é uma situação difícil, convenhamos. A pressão permanente para que sejamos alegres e felizes recrudesce nesse período do ano. É um verdadeiro bombardeio midiático que transpassa as classes sociais. Dizem a você, todos os dias, toda hora: você tem a obrigação de ser feliz. E se não é, é um fracassado. Evidentemente, no capitalismo, felicidade é sinônimo de sucesso profissional, reconhecimento e, claro, dinheiro. O pacote de felicidade devidamente embalado e oferecido nos comerciais de TV.
Se você não se encaixa nisso, então, você fracassou, não fez certo. E se você nem ao menos se esforça para atingir esse estado, você não só é um fracassado, como um verdadeiro monstro imoral. Ou um doente.
E, é claro, não se encaixar nessa condição te joga ainda mais para baixo.
Há muitas razões para se sentir assim. Uma delas é que o final do ano marca, socialmente, um período de transição, como um fechamento de um ciclo. E isso, por si só, traz a inevitável pressão por um balanço do período passado. Um balanço pessoal e quase sempre cruel. O que, por sua vez, traz frustração e ansiedade de forma quase inexorável.
Para mim, esses rituais sociais de transição sempre foram um problema. Aniversário, final de ano são seguidos por uma profunda melancolia que ultrapassa o nível de ansiedade. Daí que desenvolvi mais uma tese de botequim com a superficialidade típica das teses de botequins, embora não seja frequentador assíduo dos botequins.
Para alguns, e me encaixo nesses alguns, há uma forte tendência ao apego a qualquer coisa que pareça minimamente estável. É o Jack agarrando à tábua de madeira após o naufrágio do Titanic. Tentamos nos agarrar a qualquer coisa que nos traga a ilusão de segurança, estabilidade e conforto. Como um gato dentro de uma mansão que prefere se refugiar numa caixa de sapatos.
Aniversário, ano-novo e qualquer outro ritual de transição pressupõe mudança. E, para pessoas assim, não há nada mais assustador que a mudança. E mudança traz o risco de perdermos o que temos, mesmo que o que tenhamos seja pura ilusão. O que pode criar, e geralmente cria, um paradoxo: em geral, nutrimos um forte desejo de mudança. Mas qualquer ameaça de mudança, por mínima que seja, traz consigo um pavor.
Sim, eu sei que são rituais. Sei que nada vai mudar quando der meia-noite do dia 31 para o dia 1º de janeiro. Sei que nada vai mudar quando der meia-noite de meu aniversário. Mas a simples ideia de mudança já é capaz de provocar um arrepio. Mesmo que, em tese, não tenha muita coisa a perder.
Convencer-se de que nada vai mudar nessas datas seria um bom caminho para lidar melhor com essas situações, não? Pois bem, estou me convencendo cada vez mais que não. Estranho, não é? Pois o problema, o real problema, não é a expectativa de que as coisas mudarão. Sinto que a fonte dessa angústia é justamente a ilusão de que algo permanece. De que temos algo a nos agarrar, um lugar confortável, escuro e quentinho para nos abrigar, em geral chamado de ‘esperança’. E, sinto decepcionar, mas isso não existe.
Então, ao invés de encarar ansiosamente um aniversário ou o réveillon, temeroso das mudanças que virão, tomei o caminho contrário. Penso que a cada dia, as coisas mudam. A cada hora. A cada segundo. Você não é a mesma pessoa que era quando começou a ler esse texto. Não pelo texto em si, mas pela própria condição da existência e da realidade. A impermanência é a única certeza que temos na vida. Tudo que é sólido se desmancha no ar? Sim, a todo o momento milésimo de segundo. E aceitar esse fato pode se tornar uma atitude realmente libertadora. Só a verdade é revolucionária, não é mesmo? Pois então, resta-nos celebrar o Natal, o final de ano e até o aniversário para quem conseguir, mas sem cair na armadilha mortal. O que tem de especial nesses períodos não são as datas em si ou a “esperança” de uma suposta mudança. É a relação das pessoas, a troca de afeto, o carinho mútuo. É o que acontece no presente, e essa é a única realidade que existe, ainda que isso pareça redundante.
E, finalmente, aceitar essa insegurança, esse medo e eventual angústia, convencendo-se de que não há nada de errado nisso. Você terá problemas e angústias e isso faz parte da vida, sinto-lhe dizer. Mande a culpa para a casa do caralho. Parece passividade? Também achei isso um tempo. Mas tendo a achar que reconhecer isso é que é realmente subversivo, libertador e uma atitude ativa.
Pema Chodron, uma simpática monja que escreveu um belo livro, “Quando tudo se desfaz”, fala sobre esse processo de reconhecer que não existem âncoras nas quais possamos nos agarrar. Quando tudo se desfaz e sentimos o chão se demolir sob nossos pés, temos medo, mas tão logo podemos também encontrar o verdadeiro sentido da palavra liberdade. Deixo aqui um pequeno trecho:
“Quando tudo se desintegra, somos submetidos a uma espécie de teste, e também a um certo processo de cura. Achamos que o sentido está em passar no teste e superar o problema, mas a verdade é que as situações não têm uma solução definitiva. Elas se compõem e desmoronam. E mais uma vez se compõem e desmoronam. É simplesmente assim que funciona. O processo de cura ocorre ao deixarmos existir espaço para que tudo isso aconteça: espaço para o pesar, para o alívio, para a angústia e a alegria.”
Não deixe que a ditadura artificial da felicidade lhe aprisione. Jogue seus livros de autoajuda pela janela. Seja você mesmo, com seus medos, frustrações e tudo o que lhe faz humano. Você não precisa ser feliz o tempo todo. Não precisa fingir a todo mundo que é feliz 24 horas por dia. Não precisa seguir um padrão ditado pela sociedade ou cair nessa histeria de final de ano. Nem ao menos acreditar nesses devaneios que acabou de ler.
Walter M. mora em São Paulo, é jornal(eiro)ista, não é tão jovem e ainda não chegou a ser velho. Atualmente se ocupa nas horas vagas na busca do manual de instruções da vida.
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