segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

POR WALTER M. :: 
Vamos falar sobre o amor? Calma, não vamos invocar aquelas frases insuportavelmente reproduzidas nas redes sociais e desgraçadamente creditadas a Caio F. Abreu ou Clarice Lispector. Tampouco decretar de pronto que “o amor não existe”, talvez dito com certa frequência por aquele seu amigo que se recusa a largar uma vida de solteirice e tudo o que ela proporciona. Vamos começar por partes.


Sofrer por amor é um clichê, e espero não estar sendo insensível ao dizer isso. Quem nunca chorou no quarto escuro ouvindo The Smiths que atire a primeira pedra. É normal e, até certo ponto, inevitável. Mas, em casos extremos, pode servir como gatilho para crises de depressão e evoluir para algo pior. Todos passamos por isso, não é verdade?

Penso que o problema é a noção, o significado da palavra “amor” que introjetamos e passamos a reproduzir. Antigas, e não tão antigas companheiras minhas, reclamam que eu não digo “eu te amo” e questionam isso. Mas o problema, para mim pelo menos, é que esse é um termo tão banalizado que se tornou um significante desprovido de significado. Uma casca vazia. “Te amo muito, amiga”, declara a adolescente no Facebook a uma pessoa que conheceu no dia anterior. Não soa falso?

Não costumo dizer isso não por achar que “o amor não existe”. Claro que existe. Como construção histórica, social e ideológica, mas existe. Ou seja, não é um sentimento abstrato, etéreo, capaz de tudo, como ressuscitar donzelas envenenadas por maçãs dadas por bruxas. Não. Foi algo inventado pelo ser humano. E é como invenção que ele existe. Isso não o minimiza, penso que é até o contrário. Talvez uma das mais sofisticadas e belas invenções da humanidade.

O problema é a noção do amor romântico, subproduto do amor cortês da Idade Média. A grosso modo, e eu posso estar sendo aqui bem grosso mesmo, é a ideia de que você tem uma espécie de “alma gêmea” pré-determinada a estar ao seu lado pelo resto da vida, e assim ambos se completarão, bem como dizem aqueles termos populares: a tampa da minha panela ou a metade da minha laranja. Evidentemente, isso tem uma raiz histórica e uma motivação não tão sutil: no então capitalismo em ascensão e com a burguesia tomando as rédeas do Estado no lugar da antiga aristocracia feudal, um conjunto de regras e comportamentos morais serviram para dar legitimidade ao modelo de família patriarcal que deveria ser a nova base do novo sistema. A monogamia (é evidente que isso não servia aos homens) garantiria a segurança da hereditariedade e a consequente passagem da propriedade acumulada à geração seguinte.

Bom, mas o que isso tem a ver com hoje? Absolutamente toda produção cultural de massa, como as saudosas fotonovelas, o cinema, a televisão, a música, traz como matéria-prima principal o amor romântico construído séculos atrás como modelo hegemônico. E, claro, no capitalismo, isso vem com um forte sentimento de posse e propriedade. Você pertence à outra pessoa, e a outra pessoa pertence a você, como uma espécie de mercadoria. Uma só carne, diz o padre quando celebra o matrimônio. E, mais uma vez, é importante ressaltar o papel de subserviente relegado às mulheres nisso.

A questão é que essa ideologia é imposta a ferro e fogo de forma massiva, massacrante e doutrinária pelos veículos de comunicação de massa, mas também pela igreja, pela escola... e pela própria família, que precisa se reproduzir seguindo esse mesmo modelo.

É uma pressão absurda e cruel, principalmente sobre as mulheres. Você tem um namorado e, por algum motivo, terminam. Todas as suas aspirações, desejos e projeção foram depositadas no rapaz. Quando termina, só sobra o vazio, claro. O mundo não faz mais sentido com metade violentamente extirpada de você. Não é à toa que as histórias clássicas de amor romântico terminem inevitavelmente em tragédia: como pura idealização, só subsiste nas virgens de pele alva de um Álvares de Azevedo angustiado.

E daí, sofrer faz parte desse esquema. Está incluso no pacote.

Mas, precisa mesmo ser assim? Somos bombardeados diariamente por ideologias historicamente construídas, mas não é inexorável que a aceitemos e as assimilemos integralmente. No capitalismo, por exemplo, você só tem valor se acumular bens, ter status, fama e tudo mais. Mas podemos ser felizes, cultivar outros valores que não esses. O mundo não é determinista. Aliás, penso que só podemos ser de fato felizes, e felicidade aqui tomada como satisfação pessoal plena, se erigirmos nossos próprios valores.

Depois de chorar de forma copiosa e constrangedora sempre que levava um toco (e perder tanto tempo precioso de vida nisso), comecei a pensar numa definição própria de “amor” que pudesse ser base para uma relação que, ao invés de sofrimento e angústia, pudesse trazer alegria, serenidade e companheirismo. Então, acionei o Instituto de Pesquisas da Cabeça do Walter e, após longos estudos, elenquei os elementos para uma definição de amor não-destrutivo: companheirismo, empatia, cumplicidade, respeito, afinidade e outros elementos que, para alguém, poderia definir mais uma amizade que uma relação conjugal. E é isso, o amor, pelo menos para mim, tem mais a ver com o que conhecemos como amizade do que o conceito tradicional trazido pelo amor romântico.

Você não tem uma alma gêmea esperando um encontro redentor. Ou melhor, você tem centenas, milhares, milhões de almas gêmeas espalhadas pelo mundo. Neste momento, pode ter uma alma gêmea sua no interior do Siri Lanka vivendo sob uma cabana numa plantação de arroz.

E o pior é que esse condicionamento trazido pelo amor romântico – ou amor-burguês, vamos deixar de ser tão diplomáticos – traz como principal subproduto o ciúme. Quem nunca sentiu, se remoeu, se torturou de ciúme, é um hipócrita ou uma criatura iluminada. E esse sentimento, destrutivo, está intimamente ligado à ideia de posse e propriedade que falamos lá atrás. E leva a tragédias, claro. E, mais uma vez, o feminicídio está aí para mostrar isso.

Nisso gostaria de apresentar outra constatação do Instituto de Pesquisas da Cabeça do Walter. A ação do Ego nisso tudo. Vivemos numa sociedade em que o neoliberalismo na sua forma mais brutal, incentiva um individualismo exacerbado e uma consequente ditadura do Ego. Já parou pra pensar se você gosta realmente de alguém ou se gosta do fato de a pessoa gostar de você? Você pode amar o amor que acha que tem. Quem não conhece aquela pessoa que usa mulheres como um score como se estivesse num jogo de pontuação tentando ser o melhor?

Vamos pensar nesse outro caso: dois casais se “amam”, mas de repente uma das partes constata que já não sente o mesmo pela outra pessoa. De forma honesta e sincera, informa isso ao seu parceiro. As reações mais óbvias seriam raiva, tristeza e decepção. Isso no melhor das hipóteses. O amante se torna automaticamente um inimigo declarado, como na frase “ex bom é ex morto”. Claro, seu Ego viciado não tem mais a costumeira alimentação diária para sua fome irascível. Sempre digo: quando o que se define como “amor” vira obsessão, não estamos falando mais de “amor”, independentemente do que cada um define como isso, mas de outra coisa.

Bom, se você aguentou tudo isso até aqui e ainda não pulou da janela, vamos falar de coisas boas. Por que não abandonar de vez essa concepção, que no fundo é uma concepção de classe construída em determinado momento histórico, e partir para outra?

Por que, ao invés do amor romântico sofrido, resignado, torturante, e até certo modo hipócrita, não cultivamos outros valores, inversos a tudo isso? Como já disse, o Instituto de Pesquisas da Cabeça do Walter, entidade não muito idônea, devo admitir, vem trabalhando em valores como companheirismo, carinho, empatia e sinceridade. Valores igualmente humanos. Deve-se chamar isso de “amor”? Fica a gosto do cliente. Pessoalmente não o designo assim para não confundir com a concepção lá de cima. O melhor talvez seja recorrer às premissas do amor-camaradagem de Kollontai: paixão, ternura espiritual, lástima, inclinação.

Sejamos honestos: a vida, em geral não é bela. Pode ser às vezes, claro, mas em geral não é. São tempos difíceis, violentos, cruéis. Por que piorar isso com uma relação que te traz ainda mais desgosto e torna a sua vida ainda mais difícil e angustiante? Pra mim, uma relação deve trazer leveza, compartilhamento de momentos significativos (porque a felicidade só é plena se compartilhada), fortalecimento e enriquecimento pessoal mútuo.

Não nego que não possa haver dificuldades nesse processo, claro que pode e há. Mas o que deveria primar, para mim, são esses valores. Uma relação não deveria ser um problema ou fonte de angústia e desespero, mas uma solução, um oásis de refúgio em meio à barbárie. Um complexo de sentimentos que nos tornem ainda mais humanos. Como a arte. Quando essa relação se inverte, quando a balança pende para o outro lado, seria o caso de redefinir isso, não é mesmo?

Mas, agora, uma coisa que aprendi é que não devemos temer a solidão. Amo (no sentido de gostar mesmo) Vinicius de Moraes, mas não concordo quando ele canta que “Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão”. Porque às vezes a solidão é nossa melhor companheira, e não temos que temer isso. Você não precisa de ninguém. Talvez seja bom pensar no “amor” como um bônus que a vida te dá a fim de te enriquecer e tornar sua existência mais significativa e plena.

E penso que isso se refere a qualquer tipo de relação: uma relação conjugal monogâmica, poligâmica, poliamorosa, o que for. E aos amigos, claro. Resumindo: “amar” não pode significar sofrimento ou queimar num fogo que “arde sem se ver”. Deixemos isso à literatura. É sentir-se bem, querido e fortalecido. Quando há angústia, obsessão e ciúme, isso já é outra coisa. Experimente deixar o Ego de lado, ter empatia, ver-se na outra pessoa, tentar sentir o que ela sente, compartilhar as coisas boas quando puder e, quando terminar, porque tudo na vida é perene, deixar partir de forma natural como uma folha no outono.




Walter M. mora em São Paulo, é jornal(eiro)ista, não é tão jovem e ainda não chegou a ser velho. Atualmente se ocupa nas horas vagas na busca do manual de instruções da vida.







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