POR RODRIGO BARRENECHEA ::
Insônia causa essas coisas... inspiração também... mas sem angústia, aonde iriam os escritores?
Na minha modesta compreensão, existem, na psique humana, duas tendências contraditórias. Uma nos leva a querer pertencer a algo. Mais além do “espírito de manada”, todos nós queremos, de alguma maneira, pertencer a algo; um grupo, uma família, um círculo de amigos. Gostos, tendências, padrões, essas coisas acabam por nos pautar e nos moldam (ou deixamos nos moldar por elas) de forma a não nos sentirmos isolados. O gregarismo luta para suplantar a misantropia. Por outro lado, nossa necessidade de encontrar algo ou alguém que nos queira pelo que realmente somos nos impele a querer ser algo diferente da maioria. A necessidade de autoafirmação nos faz buscar elementos distintivos que nos destaquem na multidão. E é esse choque, ou essa mescla, que monta nossa personalidade, que nos faz ao mesmo tempo “Maria-Vai-Com-As-Outras” e “Livres-Pensadores”.
Essas reflexões eu já tenho há anos, encontrei-as num célebre texto de Antonio Gramsci, “Alguns pontos preliminares de referência”, um dos seus escritos do cárcere, o qual eu sempre inaugurava minhas aulas de filosofia, nesse passado longínquo quando eu ainda era um professor em exercício da função. O tempo passou, busquei me reinventar, assumi a fantasia de jornalista, mas essa lição sempre ecoa nos meus pensamentos. Mas o que isso tem a ver com o que hoje sinto e que possa interessar ao leitor que está esforçando-se em ler o que escrevo? É porque a sensação de “despertencimento” pode ser algo angustiante, e a busca por se encaixar pode sim ser algo tão importante quanto se saber quem é. A identidade também se constrói na identificação com o outro, não só na afirmação da diferença.
Saí da cidade onde morava, que me acolheu por mais de 40 anos da minha vida, para uma nova experiência. Larguei vida (precária, mas ainda vida), amigos, reconhecimento (mais uma vez precário) e fui para o interior – mais especificamente, para o centro do Rio Grande do Sul. Se houve aspectos positivos nessa mudança – uma vida mais pacata, mais regrada e menos estressante –, os obstáculos não deixaram a desejar em sua importância. Uma cultura diferente, um povo mais fechado. Uma moralidade aparentemente mais conservadora – que ainda não descobri por completo – talvez esconda excessos ainda mais graves. Mas, definitivamente, como escrevi em outro texto que não foi publicado aqui, mas que muitos que estão lendo este talvez tenham lido o anterior, senti-me como “um estranho numa terra estranha”, como no livro de Heinlein.
Essa sensação se agravou no meu retorno às terras cariocas – sim, morei no Rio de Janeiro. Ao chegar, não conseguia conter minha alegria. Um sorriso se estampou em minha face ao ouvir o primeiro chiado de um funcionário do aeroporto ao responder à pergunta de um turista desavisado. No entanto, essa felicidade se mostrou fugaz. Há dois fatos que justificam isso. O primeiro, que não é menos importante, mas pouco tem a ver com meus sentimentos no caso, é que esta cidade está ainda mais decadente que há nove ou dez meses atrás, quando parti aos pampas. É uma “Babilônia” cada vez menos bela e cada vez mais caótica (mesmo sempre tendo relativizado essa suposta beleza do Rio que faz as pessoas glamourizarem a pobreza das favelas ou do centro antigo, tomado de mendigos que são varridos como sujeira para debaixo do tapete, mas insistem em ressurgir em outro lugar). O segundo é que esta não é mais minha casa – por mais que eu me iluda achando que é. Não me encaixo mais aqui, não por enquanto. Não gosto de ver as coisas como estão. Causa-me espanto e dor ver o que antes era banal. Passou a anestesia que usamos para sofrer menos ao ver podridão e injustiça. Não é que não me sinta bem-vindo; é que a hospitalidade do inferno não é algo que me agrada. O problema é que “lá”, o sul, também não é minha casa. Ainda não é. E talvez nunca seja.
Nisso surge essa coisa do “despertencimento”. Aqui não é mais meu lugar; lá ainda não conseguiu ser. E onde me encaixo? O tempo vai ter que passar para essa resposta se afigurar. Mudanças terão que ocorrer. Talvez não aguente e termine voltando. Ou me acostume com a “nova casa”. Ou, ainda, procure outra que junte o melhor de cada uma – com o perigo de acabar recebendo o pior da duas. Sei que não depende apenas de mim: o controle que temos de nossas próprias vidas é bastante limitado. E o que me (e nos) resta? Aprender lições. Uma delas eu já sabia, mas estou tendo que aprender de novo – que, na verdade, nossa identidade local/regional/nacional é, como ensina Benedict Anderson, “imaginada”. E como toda ideologia, é a síntese do que vivemos e do que achamos que experenciamos. Nunca antes me senti tão apátrida como hoje.
Rodrigo Barrenechea é chileno, historiador com dois diplomas, jornalista sem nenhum, poeta sem talento mas com coragem, e como costuma se ferrar em relacionamentos, acaba frequentando divãs enquanto busca forças pra se manter vivo. Também é conhecido como o pior DJ de Rock do Rio, mas sobre isso há controvérsias...
Insônia causa essas coisas... inspiração também... mas sem angústia, aonde iriam os escritores?
Na minha modesta compreensão, existem, na psique humana, duas tendências contraditórias. Uma nos leva a querer pertencer a algo. Mais além do “espírito de manada”, todos nós queremos, de alguma maneira, pertencer a algo; um grupo, uma família, um círculo de amigos. Gostos, tendências, padrões, essas coisas acabam por nos pautar e nos moldam (ou deixamos nos moldar por elas) de forma a não nos sentirmos isolados. O gregarismo luta para suplantar a misantropia. Por outro lado, nossa necessidade de encontrar algo ou alguém que nos queira pelo que realmente somos nos impele a querer ser algo diferente da maioria. A necessidade de autoafirmação nos faz buscar elementos distintivos que nos destaquem na multidão. E é esse choque, ou essa mescla, que monta nossa personalidade, que nos faz ao mesmo tempo “Maria-Vai-Com-As-Outras” e “Livres-Pensadores”.
Essas reflexões eu já tenho há anos, encontrei-as num célebre texto de Antonio Gramsci, “Alguns pontos preliminares de referência”, um dos seus escritos do cárcere, o qual eu sempre inaugurava minhas aulas de filosofia, nesse passado longínquo quando eu ainda era um professor em exercício da função. O tempo passou, busquei me reinventar, assumi a fantasia de jornalista, mas essa lição sempre ecoa nos meus pensamentos. Mas o que isso tem a ver com o que hoje sinto e que possa interessar ao leitor que está esforçando-se em ler o que escrevo? É porque a sensação de “despertencimento” pode ser algo angustiante, e a busca por se encaixar pode sim ser algo tão importante quanto se saber quem é. A identidade também se constrói na identificação com o outro, não só na afirmação da diferença.
Saí da cidade onde morava, que me acolheu por mais de 40 anos da minha vida, para uma nova experiência. Larguei vida (precária, mas ainda vida), amigos, reconhecimento (mais uma vez precário) e fui para o interior – mais especificamente, para o centro do Rio Grande do Sul. Se houve aspectos positivos nessa mudança – uma vida mais pacata, mais regrada e menos estressante –, os obstáculos não deixaram a desejar em sua importância. Uma cultura diferente, um povo mais fechado. Uma moralidade aparentemente mais conservadora – que ainda não descobri por completo – talvez esconda excessos ainda mais graves. Mas, definitivamente, como escrevi em outro texto que não foi publicado aqui, mas que muitos que estão lendo este talvez tenham lido o anterior, senti-me como “um estranho numa terra estranha”, como no livro de Heinlein.
Essa sensação se agravou no meu retorno às terras cariocas – sim, morei no Rio de Janeiro. Ao chegar, não conseguia conter minha alegria. Um sorriso se estampou em minha face ao ouvir o primeiro chiado de um funcionário do aeroporto ao responder à pergunta de um turista desavisado. No entanto, essa felicidade se mostrou fugaz. Há dois fatos que justificam isso. O primeiro, que não é menos importante, mas pouco tem a ver com meus sentimentos no caso, é que esta cidade está ainda mais decadente que há nove ou dez meses atrás, quando parti aos pampas. É uma “Babilônia” cada vez menos bela e cada vez mais caótica (mesmo sempre tendo relativizado essa suposta beleza do Rio que faz as pessoas glamourizarem a pobreza das favelas ou do centro antigo, tomado de mendigos que são varridos como sujeira para debaixo do tapete, mas insistem em ressurgir em outro lugar). O segundo é que esta não é mais minha casa – por mais que eu me iluda achando que é. Não me encaixo mais aqui, não por enquanto. Não gosto de ver as coisas como estão. Causa-me espanto e dor ver o que antes era banal. Passou a anestesia que usamos para sofrer menos ao ver podridão e injustiça. Não é que não me sinta bem-vindo; é que a hospitalidade do inferno não é algo que me agrada. O problema é que “lá”, o sul, também não é minha casa. Ainda não é. E talvez nunca seja.
Nisso surge essa coisa do “despertencimento”. Aqui não é mais meu lugar; lá ainda não conseguiu ser. E onde me encaixo? O tempo vai ter que passar para essa resposta se afigurar. Mudanças terão que ocorrer. Talvez não aguente e termine voltando. Ou me acostume com a “nova casa”. Ou, ainda, procure outra que junte o melhor de cada uma – com o perigo de acabar recebendo o pior da duas. Sei que não depende apenas de mim: o controle que temos de nossas próprias vidas é bastante limitado. E o que me (e nos) resta? Aprender lições. Uma delas eu já sabia, mas estou tendo que aprender de novo – que, na verdade, nossa identidade local/regional/nacional é, como ensina Benedict Anderson, “imaginada”. E como toda ideologia, é a síntese do que vivemos e do que achamos que experenciamos. Nunca antes me senti tão apátrida como hoje.
Rodrigo Barrenechea é chileno, historiador com dois diplomas, jornalista sem nenhum, poeta sem talento mas com coragem, e como costuma se ferrar em relacionamentos, acaba frequentando divãs enquanto busca forças pra se manter vivo. Também é conhecido como o pior DJ de Rock do Rio, mas sobre isso há controvérsias...
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