POR WALTER M. ::
Do que eu mais me lembro dela são seus grandes olhos verdes. Contrastavam com sua pele morena e rosto delicado moldurado por cabelos cacheados castanhos claros. E, claro, aquele sorriso que alargava uma boca pequena de lábios delicados.
Chamava-se Fernanda.
Encontrar Fernanda no recreio era o melhor momento de uma então criança de oito anos. E chamar sua atenção era o grande desafio do dia. Até que eu e meu amigo desenvolvemos uma estratégia infalível. Pedíamos dinheiro aos nossos pais para comprar um salgado na cantina do colégio, mas comprávamos para ela, que se divertia com a situação, por suposto. A cada intervalo, ela escolhia o nobre cavalheiro que teria a honra de trazer-lhe um salgado. E ser escolhido do dia era a maior das honrarias que um impúbere cavalheiro poderia ter.
Ela cuidava das crianças pequenas na creche durante o intervalo. Adorava crianças. Eu e meu amigo realizávamos aquele périplo religiosamente. Íamos até ela, que nos informava quem seria o privilegiado a presenteá-la com uma esfirra de carne ou um enroladinho de presunto e queijo. O azarado guardava os parcos trocados para a tentativa do dia seguinte. E ambos segurávamos o estômago por horas a fio até o final da aula, sem reclamar evidentemente.
Até que Fernanda se foi.
Era férias. Numa noite, já na cama, ouço meus pais conversando. Fingindo dormir, ouço o diálogo em silêncio. Um trágico acidente de carro. Fernanda morta, a irmã em coma. Após os lamentos, uma ordem quase suspirada: “Não fale nada ao menino.” Mas o menino ouvira tudo. E entendera.
Aquela criança, na época, acreditava em Deus. Mais que isso, tinha absoluta certeza que conversava com ele. Achava-se até íntimo do cara lá de cima. Pois bem, a um ser onipotente, essa tragédia não deveria ser algo tão difícil de resolver. O menino então fez o que seria mais lógico de se fazer. Juntou as mãos e, na penumbra da cama, pediu para que aquilo fosse consertado. Que o tempo voltasse e que, no momento em que ela entraria naquele carro, o motor fundisse. Seria simples, para alguém que fez todo o universo, mudar um detalhe trivial daqueles.
A cada noite, escondido e solitário, unia as mãozinhas, apertava-as bem forte e com a sinceridade próprias das crianças, com as lágrimas escorrendo pelo travesseiro, pedia repetida vezes que aquela tragédia fosse apagada da realidade. Visualizava a cena dela entrando no carro e ele, de repente e inexplicavelmente, não desse a partida. Ou que ela desistisse da viagem no último minuto. Ou que o carro freasse no momento derradeiro antes do acontecido. Tanto faz, desde que aquela realidade inconcebível fosse simplesmente consertada.
Noites e noites repetindo o mesmo ritual. Em silêncio e em segredo. Não contava a ninguém meu simples plano. Não haveria por quê.
Quando as aulas foram retomadas, junto ao frenesi do reencontro com os amigos, tinha a mais absoluta certeza que a encontraria ali, no lugar de sempre, com aquele par de olhos verdes e sorriso inocente. Não haveria de ser diferente.
Vesti-me rapidamente, engoli o café e parti para o primeiro dia de aula no colégio, confiante. Não havia nenhuma tristeza ou preocupação, pois para mim seria óbvio e lógico que a reencontraria naquele dia, como em todos os outros.
Cheguei ao colégio, e ela não estava lá. Entendi finalmente o que ocorrera quando a professora informou a todos sobre a morte de nossa amiga. Foi só então que percebi, realmente, que nunca mais a veria. Foi só então que me dei conta que Deus não havia atendido minhas sinceras súplicas.
Mantive-me religioso durante um certo tempo. Mas, anos depois, quando, já adolescente, rompi de vez com a igreja, dei-me conta de que aquilo havia sido a primeira rachadura na minha fé. E o momento em que senti realmente como era uma paixão. E o vazio da morte. E, claro, a saudade.
Peguei-me esses dias pensando em Fernanda. Havia anos que isso não me ocorria. Talvez mais de três décadas. Imaginei como estaria agora. Decerto continuaria linda. Muito provavelmente com filhos, uma família, enfim, algum companheiro capaz de oferecer mais que salgados no recreio. Questiono-me se alguém, ainda hoje, lembra-se dela. Se o meu amigo, que perdi pelos rumos da vida, ainda pensa nela. Receio que não.
É claro que me senti, talvez, triste. Com raiva certamente. Decepcionado por óbvio. Mas também achei graça nessas peripécias amorosas platônicas e infantis. É algo, enfim, bonito, não é?
Naquele momento, conheci a finitude da vida. A fragilidade da existência. Trinta anos depois, o que fica é a perene lembrança dos recreios, dos sorrisos tímidos e de seus olhos verdes. A morte é inexorável. Mas as relações humanas são capazes de tornar realidade uma obsessão centenária dos cientistas: vencer a mortalidade. Se existimos através dos outros, enquanto houver os outros, continuaremos existindo.
E entendi que as pessoas se vão. Sempre. De uma forma ou de outra. Os momentos, porém, não, pois já fazem parte de mim, e aqui estarão até o fim dos meus dias. E neles estarão, para sempre, Fernanda.
Walter M. mora em São Paulo, é jornal(eiro)ista, não é tão jovem e ainda não chegou a ser velho. Atualmente se ocupa nas horas vagas na busca do manual de instruções da vida.
Do que eu mais me lembro dela são seus grandes olhos verdes. Contrastavam com sua pele morena e rosto delicado moldurado por cabelos cacheados castanhos claros. E, claro, aquele sorriso que alargava uma boca pequena de lábios delicados.
Chamava-se Fernanda.
Encontrar Fernanda no recreio era o melhor momento de uma então criança de oito anos. E chamar sua atenção era o grande desafio do dia. Até que eu e meu amigo desenvolvemos uma estratégia infalível. Pedíamos dinheiro aos nossos pais para comprar um salgado na cantina do colégio, mas comprávamos para ela, que se divertia com a situação, por suposto. A cada intervalo, ela escolhia o nobre cavalheiro que teria a honra de trazer-lhe um salgado. E ser escolhido do dia era a maior das honrarias que um impúbere cavalheiro poderia ter.
Ela cuidava das crianças pequenas na creche durante o intervalo. Adorava crianças. Eu e meu amigo realizávamos aquele périplo religiosamente. Íamos até ela, que nos informava quem seria o privilegiado a presenteá-la com uma esfirra de carne ou um enroladinho de presunto e queijo. O azarado guardava os parcos trocados para a tentativa do dia seguinte. E ambos segurávamos o estômago por horas a fio até o final da aula, sem reclamar evidentemente.
Até que Fernanda se foi.
Era férias. Numa noite, já na cama, ouço meus pais conversando. Fingindo dormir, ouço o diálogo em silêncio. Um trágico acidente de carro. Fernanda morta, a irmã em coma. Após os lamentos, uma ordem quase suspirada: “Não fale nada ao menino.” Mas o menino ouvira tudo. E entendera.
Aquela criança, na época, acreditava em Deus. Mais que isso, tinha absoluta certeza que conversava com ele. Achava-se até íntimo do cara lá de cima. Pois bem, a um ser onipotente, essa tragédia não deveria ser algo tão difícil de resolver. O menino então fez o que seria mais lógico de se fazer. Juntou as mãos e, na penumbra da cama, pediu para que aquilo fosse consertado. Que o tempo voltasse e que, no momento em que ela entraria naquele carro, o motor fundisse. Seria simples, para alguém que fez todo o universo, mudar um detalhe trivial daqueles.
A cada noite, escondido e solitário, unia as mãozinhas, apertava-as bem forte e com a sinceridade próprias das crianças, com as lágrimas escorrendo pelo travesseiro, pedia repetida vezes que aquela tragédia fosse apagada da realidade. Visualizava a cena dela entrando no carro e ele, de repente e inexplicavelmente, não desse a partida. Ou que ela desistisse da viagem no último minuto. Ou que o carro freasse no momento derradeiro antes do acontecido. Tanto faz, desde que aquela realidade inconcebível fosse simplesmente consertada.
Noites e noites repetindo o mesmo ritual. Em silêncio e em segredo. Não contava a ninguém meu simples plano. Não haveria por quê.
Quando as aulas foram retomadas, junto ao frenesi do reencontro com os amigos, tinha a mais absoluta certeza que a encontraria ali, no lugar de sempre, com aquele par de olhos verdes e sorriso inocente. Não haveria de ser diferente.
Vesti-me rapidamente, engoli o café e parti para o primeiro dia de aula no colégio, confiante. Não havia nenhuma tristeza ou preocupação, pois para mim seria óbvio e lógico que a reencontraria naquele dia, como em todos os outros.
Cheguei ao colégio, e ela não estava lá. Entendi finalmente o que ocorrera quando a professora informou a todos sobre a morte de nossa amiga. Foi só então que percebi, realmente, que nunca mais a veria. Foi só então que me dei conta que Deus não havia atendido minhas sinceras súplicas.
Mantive-me religioso durante um certo tempo. Mas, anos depois, quando, já adolescente, rompi de vez com a igreja, dei-me conta de que aquilo havia sido a primeira rachadura na minha fé. E o momento em que senti realmente como era uma paixão. E o vazio da morte. E, claro, a saudade.
Peguei-me esses dias pensando em Fernanda. Havia anos que isso não me ocorria. Talvez mais de três décadas. Imaginei como estaria agora. Decerto continuaria linda. Muito provavelmente com filhos, uma família, enfim, algum companheiro capaz de oferecer mais que salgados no recreio. Questiono-me se alguém, ainda hoje, lembra-se dela. Se o meu amigo, que perdi pelos rumos da vida, ainda pensa nela. Receio que não.
É claro que me senti, talvez, triste. Com raiva certamente. Decepcionado por óbvio. Mas também achei graça nessas peripécias amorosas platônicas e infantis. É algo, enfim, bonito, não é?
Naquele momento, conheci a finitude da vida. A fragilidade da existência. Trinta anos depois, o que fica é a perene lembrança dos recreios, dos sorrisos tímidos e de seus olhos verdes. A morte é inexorável. Mas as relações humanas são capazes de tornar realidade uma obsessão centenária dos cientistas: vencer a mortalidade. Se existimos através dos outros, enquanto houver os outros, continuaremos existindo.
E entendi que as pessoas se vão. Sempre. De uma forma ou de outra. Os momentos, porém, não, pois já fazem parte de mim, e aqui estarão até o fim dos meus dias. E neles estarão, para sempre, Fernanda.
Walter M. mora em São Paulo, é jornal(eiro)ista, não é tão jovem e ainda não chegou a ser velho. Atualmente se ocupa nas horas vagas na busca do manual de instruções da vida.
0 comentários:
Postar um comentário