sexta-feira, 30 de agosto de 2019


POR LU CANDIDO ::
Lembrei-me de um filme que assisti há muitos anos, numa sala de cinema alternativa de Porto Alegre, matando tempo entre uma aula e outra da faculdade. Mesmo procurando, fiquei surpresa ao encontrá-lo no YouTube. “Uma Relação Pornográfica” (“Une Liaison Pornographique” – Bélgica/França, 1999) é um filme independente, de baixo orçamento, do diretor belga Frédéric Fonteyne.

[Alerta de spoiler: Vou contar o fim do filme, senão minha reflexão perde o sentido. Então, assista antes para não querer me matar depois. São oitenta minutos muito bem investidos.]

Uma mulher publica um anúncio para realizar uma fantasia sexual que nenhum homem jamais aceitou realizar. Quando alguém responde, eles passam a se encontrar num hotelzinho uma vez por semana. No começo, o objetivo é estritamente sexual. A despeito disso e do nome do filme, você não verá muitas cenas de sexo.



Trata-se de um filme simples na forma e com um conteúdo complexo, embora pareça singelo. Temos dois protagonistas, outras três personagens muito secundárias e alguns figurantes. O casal não tem nome. As personagens de Nathalie Baye e Sergi López são chamadas de Ela e Ele nos créditos.

Também não são fornecidos detalhes da vida deles, como profissão, família, relacionamentos passados. Assim, a atenção é voltada exclusivamente àquele relacionamento. A narrativa se desenvolve com ambos contando a história, em separado, a um entrevistador que não aparece. Cada um conta sua versão, e há diferenças entre elas, tanto sobre os fatos quanto sobre as percepções.

O mais admirável desse filme está no que não se pode ver. Com certa sensibilidade – e atenção, é claro – o espectador percebe cada etapa da transformação no relacionamento. Isso não se dá no texto propriamente dito, mas nos gestos, nas expressões faciais e corporais, no tom de voz, na escolha de palavras e também no ato sexual.

Com o passar do tempo, outras conexões surgem entre eles até que se veem apaixonados. [É aqui que eu começo a estragar o filme para quem não viu.] Eles então se encontram decididos a embarcar num relacionamento sério. Cada um à sua maneira acredita-se pronto para dizer ao outro o que sente e o que deseja. Estão frente a frente no mesmo café em que se encontram todas as semanas.

Eles se olham em silêncio enquanto a voz dele conta ao entrevistador invisível: “E ali eu soube que ela não queria... Ela não tinha dito nada, mas era óbvio. Dava para ler em seu rosto. Ela tinha medo de dizer, não ousava. Eu tinha de ousar por ela.” Então ele toma a atitude que julga ser correta e fala: “Não vai dar certo. Entre nós dois, não vai dar certo.”

Ela vai de um meio sorriso nervoso de expectativa a uma expressão triste de frustração que quase dá para sentir junto. Agora é sua voz que conta ao entrevistador: “Eu tinha decidido ficar com ele. Tinha até decidido lutar até o fim se dissesse que não. E aí, quando ele disse que entre nós não daria certo, logo pareceu óbvio que ele tinha razão... Adivinhava cada pensamento dele, lia cada movimento do seu rosto, e pude ver que ele queria terminar. Então eu também quis.”

Este filme está fazendo vinte anos e esta cena não para de acontecer. Parece que quanto mais desenvolvemos meios, menos conseguimos resolver um dos problemas mais elementares dos relacionamentos. O que é o fracasso da maioria dos relacionamentos senão a falha na comunicação?

No caso do filme, o momento da falha é muito nítido. Numa leitura de sinais completamente equivocada, ele toma uma decisão de forma unilateral. Na verdade, ele se dá o direito de agir pelos dois, de agir em nome dela. A julga incapaz de agir por si. Ela, por outro lado, apesar de estar decidida não vai às últimas consequências como tinha planejado.

Aqui é importante fazer uma observação. Por mais tentador que seja jogar a culpa toda nele, é preciso observar o comportamento dela ao longo da relação. Ela tinha uma parede erguida diante de si. Agia de forma defensiva e fria. Resistia a sair dos limites do acordo sexual, mesmo que fosse apenas para aceitar uma carona.

O fato é que deixaram de viver uma história que ambos queriam, mas não foram capazes de comunicar. No único momento em que o entrevistador se manifesta, pergunta a ele se não teria se enganado. Ele diz que não, que se houvesse um engano, com certeza teria acontecido algo depois. O fato de não ter acontecido nada, provava que ele estava certo.

Moral da história: estava tudo errado.

Comunicação, aqui, é mais que simplesmente falar. É falar sendo honesto. É perguntar em vez de interpretar. É aprender a ler os sinais, mas não ser arrogante e saber que também falhamos. É deixar que o outro pense por si, não colocar pensamentos em sua mente nem palavras em sua boca. É não tomar atitudes por dois. É falar sem esperar resposta.

Tenho uma teoria. Talvez o protagonista do filme seja o entrevistador. Ele é o espectador voyeur que passa de mero observador a parte da história. O espectador que se identifica, segue o fio lógico do relacionamento, torce e se frustra quando tudo dá errado e vê que nada pode ser feito para consertar, pois as certezas já foram cristalizadas. Esse agora ex-voyeur se revolta porque nosso casal errou o óbvio. Quer interferir, mas não pode. Então percebe que aquela poderia ser a sua história.






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