POR LU CANDIDO ::
Estamos nos aproximando do ponto mais crítico de infecção pelo coronavírus. Os casos e as mortes começarão a crescer em de forma exponencial.* No momento em que eu escrevo este texto, 25.427 pessoas já morreram de COVID-19 no mundo, 77 delas no Brasil.
Foto: Comboio de caminhões do Exército italiano chega a cemitério com corpos de vítimas do coronavírus (Folhapress)
Em minhas pouco mais de quatro décadas de vida, nem por um segundo imaginei que viveria algo parecido. O fato é que não existe nenhuma possibilidade de algo dessa dimensão não mudar comportamentos sociais e a forma como nos relacionamos e, sobretudo, não questionar a sociedade na qual vivemos.
Os efeitos psicológicos dessa crise são muitos e ainda estão por se ver. Estamos tentando oferecer apoio na medida do possível de forma responsável. No entanto, preciso fazer uma pausa para tratar de algo mais urgente que precede: o combate à COVID-19.
Esta semana, o presidente Bolsonaro fez um pronunciamento na TV que estarreceu a maior parte da população.** Atacou as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), tratou a COVID-19 como um resfriadinho, uma gripezinha, defendeu o retorno às aulas e atacou a imprensa que, por mais problemas que tenha, contribui com informação, que é crucial.
Essa não é só mais uma bravata do presidente. Também não é irresponsável, porque acredito que ele tenha preparado a fala de forma consciente. Ele é responsável por suas palavras e por suas consequências, e é uma fala criminosa. Ele manda as pessoas tentarem a sorte num momento em que a doença e a morte alteraram a vida do ser humano em todo o planeta.
O novo coronavírus pode levar à morte quase meio milhão de pessoas no Brasil. Estudos mais recentes chegam a falar em dois milhões de óbitos. O exemplo da Itália é emblemático. A doença disparou depois de o governo ter afrouxado as regras da quarentena.
A ciência está trabalhando. A produção de artigos científicos bateu recordes. Porém ainda não há outro jeito de parar a transmissão do coronavírus que não seja com o isolamento. A experiência dos outros países comprova isso. Por que só o Brasil seria diferente?
O comportamento de Bolsonaro desafia a lógica (e a psicologia). Como alguém pode ter tanta certeza de que tem soluções mais corretas que a OMS, os cientistas, a maioria das autoridades do mundo inteiro? É preciso ser um pouco doente para isso, é verdade. Inclusive porque ele já deu inúmeras mostras de que não é tão entendido assim.
Acontece que, além do narcisismo meio sociopata do presidente, existe uma guerra em curso. De um lado, dizem, está a economia que não pode parar, o capital. De outro, está a vida e os direitos de milhões de pessoas. Um desses lados joga muito sujo e é perverso.
Algo está muito errado
Quando Bolsonaro fez aquele pronunciamento, não estava preocupado com você, nem com seu emprego, nem com os pequenos proprietários. Estava atendendo os banqueiros que lucraram mais de R$ 81 bilhões no ano passado, os megaempresários, o dono do Madero – uma rede de restaurantes que eu nem sabia que existia –, que acha que o Brasil não pode parar por causa de 5 ou 7 mil mortes.
Todos eles pensam a mesma coisa que o dono do Madero. O que assusta é o fato de se sentirem à vontade para despejar isso com naturalidade em público. É preciso um pouco – ou muito – de psicopatia para isso. Para quem acha normal, também. Porém só isso não explica.
O que acontece é que a economia está ameaçada, como eles dizem, e é verdade. Por essa economia que eles falam, entenda-se o sistema capitalista. Nesses momentos de crise tudo fica evidente. Eles dizem que não há dinheiro. Será? Vejamos.
Os três maiores bancos privados – Santander, Bradesco e Itaú – lucraram sozinhos, em 2019, R$ 63 bilhões. Junior Durski, o tal dono do Madero, lucrou R$ 300 milhões. O Luciano Hang, o velho da Havan, R$ 5,4 bilhões. Quando eu digo lucro, estou referindo-me ao que sobrou limpinho para eles depois de pagar todas as despesas, as máquinas e os salários miseráveis de todos os seus funcionários.
Também no ano passado, o governo brasileiro gastou mais de R$ 1 trilhão em juros e amortizações da dívida pública, que nada mais é do que agiotagem, porque essa dívida já foi paga sei lá quantas vezes. Esse dinheiro vai para banqueiros e fundos de investimento internacionais. Sem falar que o país tem quase R$ 2 trilhões na reserva internacional, uma espécie de poupança.
Dito isso, pergunto: nós seremos os responsáveis por quebrar a economia? Cadê esse dinheiro agora? Quanto essa gente vai liberar para construir leitos, custear a quarentena dos mais pobres, subsidiar os autônomos e os informais? Por que nossos salários têm que ser reduzidos para dar dinheiro a eles? Por que vamos perder nossas férias se fizermos quarentena? A única economia que nos diz respeito é a do salário no fim do mês e do malabarismo para pagar os boletos.
A campanha do governo contra a quarentena tem um objetivo: garantir que a economia não pare somente para que os lucros não caiam. A propósito, essa campanha custou R$ 4,8 milhões aos cofres públicos – 70 respiradores que deixaram de ser comprados. Fica fácil entender por que eles querem salvar a economia. Talvez tenham pensado que queimar algumas vidas não seja uma má ideia.
Eles falam em caos social caso a economia pare. Caos social nós já vivemos. Nas comunidades carentes, fazer quarentena é um desafio. Famílias são obrigadas a viver em residências inadequadas; 50% das moradias não têm saneamento; há doze milhões de desempregados; o Brasil tem uma população de rua que daria para povoar um país. Então nos dizem que podemos circular, levar nossos filhos à escola.
Enquanto isso, onde eles estão? Isolados em suas mansões milionárias, servidos por empregados, com todo conforto e assistência que ultrapassam muito o necessário. Alguns fugiram para bunkers e hotéis de luxo no início do mês.
Desculpem-me, mas eu não estou nem aí para os milhões ou bilhões que eles vão perder. Com o dinheiro deles, seria possível salvar milhares de vidas. Eles são responsáveis por todas as mortes que poderiam ser evitadas.
Estamos abandonados
Acredito que podemos estar com uma oportunidade fantástica nas mãos, embora dentro de uma catástrofe monstruosa. Nesse cenário, faremos escolhas. Sempre estivemos abandonados por eles. A diferença é que agora ficou mais evidente. Mas estamos juntos, sabemos quem são os nossos.
Tenho visto bonitos gestos de solidariedade. Vejo as conversas nas janelas da Itália e da Espanha, a imagem linda da Rocinha brilhando para os profissionais da saúde, as greves dos operários da Itália (que começam a surgir no Brasil). Vejo os flertes nas lajes da minha rua. Vejo meus amigos oferecendo ajuda para os meus pais que estão longe. Vejo as comunidades se organizando.
Precisamos parar agora. Não é só por você: é pelas pessoas que você ama, é pelo outro. Não caia na conversa de quem só está interessado em pular numa piscina de dinheiro no final do ano.
Quem pode trabalhar em casa tem que se isolar imediatamente se ainda não o fez. Temos que ajudar os que ainda são obrigados a se expor a parar também. Podemos fazer nossa própria campanha para que todos possam parar sem medo de terem seus salários descontados, de perderem seus empregos. Podemos participar dos protestos nas redes sociais, gravar vídeos, se lá. Brasileiro é um bicho criativo.
Se expulsássemos Bolsonaro, tenho certeza que saberíamos governar bem melhor. Apresentaríamos medidas eficientes para combater a COVID-19 e evitaríamos milhares de mortes. Nós conhecemos a realidade, nós a vivemos e sabemos de que precisamos. Já vimos que o dinheiro existe.
Se todo mundo parar, eles são nada. O dono do Madero não sabe fritar um hambúrguer nem para ele mesmo comer. O dono da Havan vai ficar com suas lojas entulhadas. Os donos de fábricas não sabem apertar um parafuso. Tudo que eles têm, fomos nós que produzimos, cada centavo.
Vamos ver quem precisa de quem.
* Quando terminei o texto, já eram 27.216 mortes no mundo, 92 no Brasil.
** Logo depois que publiquei este texto, recebi a entrevista de Jair Bolsonaro ao Datena. Ele disse: “Alguns vão morrer? Vão, ué, lamento. Essa é a vida.” Acho que já chega. Não podemos ficar nas mãos de um psicopata assassino. Nossa sobrevivência passou a depender de tirar esse sujeito de lá.
Estamos nos aproximando do ponto mais crítico de infecção pelo coronavírus. Os casos e as mortes começarão a crescer em de forma exponencial.* No momento em que eu escrevo este texto, 25.427 pessoas já morreram de COVID-19 no mundo, 77 delas no Brasil.
Foto: Comboio de caminhões do Exército italiano chega a cemitério com corpos de vítimas do coronavírus (Folhapress)
Em minhas pouco mais de quatro décadas de vida, nem por um segundo imaginei que viveria algo parecido. O fato é que não existe nenhuma possibilidade de algo dessa dimensão não mudar comportamentos sociais e a forma como nos relacionamos e, sobretudo, não questionar a sociedade na qual vivemos.
Os efeitos psicológicos dessa crise são muitos e ainda estão por se ver. Estamos tentando oferecer apoio na medida do possível de forma responsável. No entanto, preciso fazer uma pausa para tratar de algo mais urgente que precede: o combate à COVID-19.
Esta semana, o presidente Bolsonaro fez um pronunciamento na TV que estarreceu a maior parte da população.** Atacou as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), tratou a COVID-19 como um resfriadinho, uma gripezinha, defendeu o retorno às aulas e atacou a imprensa que, por mais problemas que tenha, contribui com informação, que é crucial.
Essa não é só mais uma bravata do presidente. Também não é irresponsável, porque acredito que ele tenha preparado a fala de forma consciente. Ele é responsável por suas palavras e por suas consequências, e é uma fala criminosa. Ele manda as pessoas tentarem a sorte num momento em que a doença e a morte alteraram a vida do ser humano em todo o planeta.
O novo coronavírus pode levar à morte quase meio milhão de pessoas no Brasil. Estudos mais recentes chegam a falar em dois milhões de óbitos. O exemplo da Itália é emblemático. A doença disparou depois de o governo ter afrouxado as regras da quarentena.
A ciência está trabalhando. A produção de artigos científicos bateu recordes. Porém ainda não há outro jeito de parar a transmissão do coronavírus que não seja com o isolamento. A experiência dos outros países comprova isso. Por que só o Brasil seria diferente?
O comportamento de Bolsonaro desafia a lógica (e a psicologia). Como alguém pode ter tanta certeza de que tem soluções mais corretas que a OMS, os cientistas, a maioria das autoridades do mundo inteiro? É preciso ser um pouco doente para isso, é verdade. Inclusive porque ele já deu inúmeras mostras de que não é tão entendido assim.
Acontece que, além do narcisismo meio sociopata do presidente, existe uma guerra em curso. De um lado, dizem, está a economia que não pode parar, o capital. De outro, está a vida e os direitos de milhões de pessoas. Um desses lados joga muito sujo e é perverso.
Algo está muito errado
Quando Bolsonaro fez aquele pronunciamento, não estava preocupado com você, nem com seu emprego, nem com os pequenos proprietários. Estava atendendo os banqueiros que lucraram mais de R$ 81 bilhões no ano passado, os megaempresários, o dono do Madero – uma rede de restaurantes que eu nem sabia que existia –, que acha que o Brasil não pode parar por causa de 5 ou 7 mil mortes.
Todos eles pensam a mesma coisa que o dono do Madero. O que assusta é o fato de se sentirem à vontade para despejar isso com naturalidade em público. É preciso um pouco – ou muito – de psicopatia para isso. Para quem acha normal, também. Porém só isso não explica.
O que acontece é que a economia está ameaçada, como eles dizem, e é verdade. Por essa economia que eles falam, entenda-se o sistema capitalista. Nesses momentos de crise tudo fica evidente. Eles dizem que não há dinheiro. Será? Vejamos.
Os três maiores bancos privados – Santander, Bradesco e Itaú – lucraram sozinhos, em 2019, R$ 63 bilhões. Junior Durski, o tal dono do Madero, lucrou R$ 300 milhões. O Luciano Hang, o velho da Havan, R$ 5,4 bilhões. Quando eu digo lucro, estou referindo-me ao que sobrou limpinho para eles depois de pagar todas as despesas, as máquinas e os salários miseráveis de todos os seus funcionários.
Também no ano passado, o governo brasileiro gastou mais de R$ 1 trilhão em juros e amortizações da dívida pública, que nada mais é do que agiotagem, porque essa dívida já foi paga sei lá quantas vezes. Esse dinheiro vai para banqueiros e fundos de investimento internacionais. Sem falar que o país tem quase R$ 2 trilhões na reserva internacional, uma espécie de poupança.
Dito isso, pergunto: nós seremos os responsáveis por quebrar a economia? Cadê esse dinheiro agora? Quanto essa gente vai liberar para construir leitos, custear a quarentena dos mais pobres, subsidiar os autônomos e os informais? Por que nossos salários têm que ser reduzidos para dar dinheiro a eles? Por que vamos perder nossas férias se fizermos quarentena? A única economia que nos diz respeito é a do salário no fim do mês e do malabarismo para pagar os boletos.
A campanha do governo contra a quarentena tem um objetivo: garantir que a economia não pare somente para que os lucros não caiam. A propósito, essa campanha custou R$ 4,8 milhões aos cofres públicos – 70 respiradores que deixaram de ser comprados. Fica fácil entender por que eles querem salvar a economia. Talvez tenham pensado que queimar algumas vidas não seja uma má ideia.
Eles falam em caos social caso a economia pare. Caos social nós já vivemos. Nas comunidades carentes, fazer quarentena é um desafio. Famílias são obrigadas a viver em residências inadequadas; 50% das moradias não têm saneamento; há doze milhões de desempregados; o Brasil tem uma população de rua que daria para povoar um país. Então nos dizem que podemos circular, levar nossos filhos à escola.
Enquanto isso, onde eles estão? Isolados em suas mansões milionárias, servidos por empregados, com todo conforto e assistência que ultrapassam muito o necessário. Alguns fugiram para bunkers e hotéis de luxo no início do mês.
Desculpem-me, mas eu não estou nem aí para os milhões ou bilhões que eles vão perder. Com o dinheiro deles, seria possível salvar milhares de vidas. Eles são responsáveis por todas as mortes que poderiam ser evitadas.
Estamos abandonados
Acredito que podemos estar com uma oportunidade fantástica nas mãos, embora dentro de uma catástrofe monstruosa. Nesse cenário, faremos escolhas. Sempre estivemos abandonados por eles. A diferença é que agora ficou mais evidente. Mas estamos juntos, sabemos quem são os nossos.
Tenho visto bonitos gestos de solidariedade. Vejo as conversas nas janelas da Itália e da Espanha, a imagem linda da Rocinha brilhando para os profissionais da saúde, as greves dos operários da Itália (que começam a surgir no Brasil). Vejo os flertes nas lajes da minha rua. Vejo meus amigos oferecendo ajuda para os meus pais que estão longe. Vejo as comunidades se organizando.
Precisamos parar agora. Não é só por você: é pelas pessoas que você ama, é pelo outro. Não caia na conversa de quem só está interessado em pular numa piscina de dinheiro no final do ano.
Quem pode trabalhar em casa tem que se isolar imediatamente se ainda não o fez. Temos que ajudar os que ainda são obrigados a se expor a parar também. Podemos fazer nossa própria campanha para que todos possam parar sem medo de terem seus salários descontados, de perderem seus empregos. Podemos participar dos protestos nas redes sociais, gravar vídeos, se lá. Brasileiro é um bicho criativo.
Se expulsássemos Bolsonaro, tenho certeza que saberíamos governar bem melhor. Apresentaríamos medidas eficientes para combater a COVID-19 e evitaríamos milhares de mortes. Nós conhecemos a realidade, nós a vivemos e sabemos de que precisamos. Já vimos que o dinheiro existe.
Se todo mundo parar, eles são nada. O dono do Madero não sabe fritar um hambúrguer nem para ele mesmo comer. O dono da Havan vai ficar com suas lojas entulhadas. Os donos de fábricas não sabem apertar um parafuso. Tudo que eles têm, fomos nós que produzimos, cada centavo.
Vamos ver quem precisa de quem.
* Quando terminei o texto, já eram 27.216 mortes no mundo, 92 no Brasil.
** Logo depois que publiquei este texto, recebi a entrevista de Jair Bolsonaro ao Datena. Ele disse: “Alguns vão morrer? Vão, ué, lamento. Essa é a vida.” Acho que já chega. Não podemos ficar nas mãos de um psicopata assassino. Nossa sobrevivência passou a depender de tirar esse sujeito de lá.
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