segunda-feira, 11 de maio de 2020

POR LU CANDIDO :: 
Eu estava em dúvida sobre escrever este texto, pois envolve discussões éticas e morais muito mais profundas do que posso garantir aqui. A morte é coisa muito sensível e, sobretudo neste momento, é preciso ter cuidado ao abordá-la. Contudo, após ler uma notícia hoje à tarde, senti quase obrigação de levantar uma reflexão. 

FOTO: Hospital de campanha em Manaus (Alex Pazuello/Semcom)

A notícia: um dos organizadores da manifestação bolsonarista que aconteceu em Brasília no fim de semana dos dias 9 e 10 de maio está internado numa UTI com COVID-19. Ele era o “comandante do comboio”, como foi chamado pelo principal líder do movimento pró-ditadura, responsável por levar 300 caminhões à capital federal.

Os caminhões foram barrados pelo coronavírus, mas a manifestação aconteceu no fim de semana, com mais deboche dos mortos, coreografia com caixões, Bolsonaro andando de jet ski sem máscara e aglomerando gente em volta dele, investidas contra a imprensa, tiro ao alvo na cara de desafetos do presidente, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ex-ministro da Justiça, Sergio Moro.

O comandante do comboio faz parte de uma horda de pessoas que segue o presidente. Não podemos nunca esquecer as suas palavras, para quem a COVID-19 é “gripezinha”, “fantasia”, “histeria”. No momento em que as mortes dobravam, ele disse que o vírus estava indo embora. Depois, diante dos já milhares de mortos, disse que não era coveiro. Para que não pairasse dúvidas sobre seu grau de comprometimento nulo com a população, ele respondeu com um “E daí? Não posso fazer nada” quando foi perguntado sobre suas responsabilidades como chefe de Estado.

Estas pessoas negam a pandemia, não usam máscara, não adotam as práticas recomendadas pela OMS, promovem aglomerações, aproximam-se de outras pessoas que não têm nada a ver, como a imprensa, por exemplo, colocando em risco a vida delas. Eles agridem quem se manifesta contra suas posições. Esse homem em particular – histérico e fantasista de acordo com o critério de Bolsonaro – comandava um comboio de caminhões para uma manifestação na qual haveria treinamento militar para invadir o STF e o Congresso Nacional.

Na vida real, a ocupação de leitos de UTI se aproxima do limite. Nos estados com o maior número de casos da doença (Amazonas, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo), mais de 80% dos leitos já estão ocupados no SUS. A situação só não é pior porque os estados estabeleceram quarentena que retardou um pouco a disseminação do vírus. Vale ressaltar que foram medidas exíguas que passaram longe de apresentar solução efetiva. Seria mais eficaz que se intensificasse o isolamento físico e que o Estado assumisse o controle dos leitos de UTI privados para estabelecer uma lista única, garantindo atendimento a todos sem discriminação.

Enquanto escrevo estas linhas, o número de infectados chega a 169 mil casos confirmados. Os mortos são 11.625. Esses números são muito rebaixados por conta da falta de testes e da subnotificação. Os enlutados devem somar algo perto de 200 milhões de pessoas: o total da nossa população menos os negacionistas que estão pouco se importando com a vida de qualquer pessoa.

Colocada a situação, pergunto: parece apropriado que este senhor esteja ocupando um leito de UTI?

Existe no Brasil um instrumento legal chamado “testamento vital” ou “declaração antecipada de vontade”. Trata-se de um documento no qual uma pessoa define instruções sobre sua morte. Em geral, é feito por pessoas que sofrem de doenças terminais, mas não há impedimento para que qualquer um possa fazê-lo. Com esse documento registrado previamente, os familiares de um paciente que não deseja ter sua vida prolongada de forma artificial são obrigados a respeitar sua vontade.

A dra. Ana Claudia Quintana Arantes é uma médica renomada, especializada em cuidados paliativos, autora dos livros “A morte é um dia que vale a pena viver” e “Histórias lindas de morrer”. Há um mês, ela fez a seguinte proposta em sua página do Facebook: “quem volta a trabalhar ou manda seus funcionários voltarem na marra assina um testamento vital abrindo mão de algumas vagas em hospital (sua e das pessoas com quem convive, incluindo pai, mãe, irmãos e filhos).”

Quero reafirmar a proposta dela com algumas considerações. Para começar, não faz nem sentido alguém estar recebendo tratamento para algo que sequer acredita que existe. Ampliaria a proposta a todos que insistem em não cumprir as orientações da Organização Mundial de Saúde, em especial àqueles que atuam de forma aberta contra as políticas de combate ao vírus.

Quanto aos familiares, acho discutível. Eu abarcaria pessoas em geral que convivem com o sujeito negacionista de forma voluntária e consciente sem especificar, pois familiares não necessariamente têm o mesmo ponto de vista.

Essa proposta ganha muita importância no momento que vivemos, pois esse deixou de ser um problema ético e moral simplesmente. Existe uma questão objetiva urgente: não há leitos para todos. O leito que o comandante do comboio está ocupando provavelmente custará a vida de alguém que respeitou as orientações de prevenção.

Essa medida também pouparia os médicos da escolha entre quem vai receber o tratamento e quem não vai. A prática, amparada pela ética médica, manda que, em casos nos quais dois pacientes disputam o mesmo procedimento, o médico deverá eleger aquele com melhor prognóstico. Não consigo nem imaginar o quão difícil seja fazer isso. Já existem levantamentos que apontam para um aumento de quase cem por cento nos casos de adoecimento mental entre profissionais da saúde.

Assim, por exemplo, se um negacionista com histórico de atleta e sem fator de risco estiver concorrendo a uma vaga com uma senhora de setenta anos ou com uma pessoa de trinta que tem asma, ambos tendo seguido as orientações das autoridades da Saúde, a vaga vai ser do negacionista.

Vejam bem: não estou defendendo que essas pessoas não tenham tratamento, em hipótese alguma. Nenhuma pessoa pode ser discriminada no ambiente médico, e caso isso ocorra deve ser denunciado. Não seria uma imposição. O sujeito faria o testamento com base nas suas convicções, coerente com o que acredita e defende. É uma forma inclusive de respeito à sua ideologia.

Fica então a proposta aos bolsonaristas negacionistas: que, coerentes com suas ações e palavras e em respeito à sua ideologia, registrem, de forma voluntária e consciente, um testamento vital abrindo mão de internação em caso de infecção por coronavírus. Afinal, um resfriadinho a gente cura em casa com uma receitinha da vovó, né?


*As fontes estão linkadas no próprio texto.

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