sábado, 23 de março de 2024

POR LU CANDIDO ::
Estamos nos aproximando do Dia Mundial do Transtorno Bipolar. Estou há dias pensando no que escrever.



Foto: Rawpixel
Foto da capa: Atlas Company


Eu poderia dizer que o transtorno bipolar (TAB) é uma doença crônica grave, neuropsicobiológica (acho que essa palavra não existe), de causas principalmente genéticas. Que afeta cerca de 2% da população mundial, número que deve ser maior, já que a subnotificação é grande e o erro de diagnóstico é comum. Que é uma doença marcada por episódios de mania e de depressão. Que é a doença que mais mata por suicídio. Etc.

Saber sobre isso é fundamental. A psicoeducação salvou minha vida – literalmente. Mas, quando pensei nessa frase, percebi que poderia ser mais produtivo contar como isso aconteceu – e acontece. Talvez, ao terminar este texto, você perceba que também já passou por coisas parecidas ou conhece alguém que passou.

Sou bipolar tipo qualquer coisa entre o 1 e o 2. Tudo acontece ao mesmo tempo. Lido com a doença há mais de duas décadas (talvez três). Nesse tempo, percebi que a maioria das pessoas não faz ideia do que é transtorno bipolar. Ouvi muita merda, me magoei, e hoje entendo que a ignorância é um problema de quem a tem, imerso numa sociedade que marginaliza os doentes mentais.

Não é uma doença “apenas” psicológica. Tem dias que me falta energia física para levantar da cama. Sinto dores no corpo, tenho enxaqueca, problemas gástricos, já tive amnésia (fora as alcoólicas). Às vezes, meu cabelo cai aos tufos. Libido? Que bicho é esse?

Tenho problemas alimentares. Desde adolescente travo uma briga contra meu corpo. Magra demais, gorda demais. Isso não seria nada ruim se fosse natural, mas já tive anorexia e hoje estou obesa. Não consigo me olhar no espelho nem sair de casa.

Aí, do nada, mais de meia-noite de um sábado, decidi que precisava sair. Fui andando sozinha, a pé, até uma rua de bares que já frequentei. Encontrei conhecidos, que não viram nada estranho em mim, muito pelo contrário, e fiquei zanzando de bar em bar. Enchi a cara, assumi compromissos que não vou cumprir com meia dúzia de gente e cheguei em casa às nove da manhã. Levei uma semana pra me recuperar.

Penso muito, e muito rápido. É muito difícil focar em algo e me concentrar. Uma ideia atropela a outra. É como se não desse tempo de concluir um pensamento e outro já estivesse lá para interromper. É difícil ler e escrever. Não consigo falar em público, principalmente em reuniões ou ocasiões que exigem uma fala organizada. Me sinto burra, incompetente, inútil.

Quando fico obcecada com uma coisa, quero saber e ter tudo sobre ela. Pode até parecer natural, e talvez seja para você. Só que não consigo focar em mais nada. Posso passar horas ou dias pesquisando, hiperfocada. Ou maratonando uma série de quinze temporadas em três dias.

Pensamentos intrusivos são uma constante. Do nada, brota na minha mente uma gafe que cometi quando tinha cinco anos de idade – ou qualquer coisa do tipo. E assim eu viro um poço de vergonha e de culpa.

Deito para dormir à meia-noite e só consigo pegar no sono às quatro da manhã. Tem noites que fico jogando ou vendo vídeos de chihuahua por horas. Sei que não devo levar o celular pra cama, mas é como se houvesse uma força oculta me comandando. E ela existe: se chama neurônio e está oculta pelo crânio.

Minha produtividade no trabalho não é a mesma que as pessoas tidas como normais. Tenho dificuldade com certas interações, quase fobia, e no trabalho isso se torna um problema sério. Amo o que faço atualmente, mas no meu cantinho. No entanto, tenho que me esforçar para ser “normal” e, no fim do dia, muitas vezes, estou destruída. Porque não tenho a energia dos “normais”.

Isso nem sempre. Às vezes tenho energia demais. Nessas horas, preciso parar e observar, porque provavelmente é mania. Normalmente vem acompanhada de uma irritação excessiva, com todos e por qualquer coisa. Parece que ninguém faz nada certo, exceto eu, uma ideia tão presunçosa quanto falsa.

Já me afundei em dívidas. Em tempos distantes, comprei um carro voltando da balada. Isso foi há muito tempo, mas mesmo depois que controlei a doença continuei fazendo gastos desnecessários eventualmente.

Quando meu pai morreu, por exemplo, decidi que ia começar a pintar, como ele. Era para ser uma caixa de pastel oleoso e um bloco de papel, mas para mim isso não bastava. Hoje tenho uma prancheta profissional e todos os tipos de material de desenho imagináveis.

De tempos em tempos, tenho compulsão por comprar livros. Pelo menos é algo que eu amo e que faço bom proveito. Tenho uma pequena biblioteca com cerca de mil títulos, da qual me orgulho. O problema é que a fatura do cartão não está nem aí para o meu amor por livros.

Normalmente não sinto tristeza quando tenho um pico de depressão. Sinto dor. Uma dor tão profunda, a pior de todas que já senti, que não tem como explicar a quem nunca a sentiu. Sinto desesperança. Tudo perde o sentido. Não tenho vitalidade, me isolo do mundo. Tenho ideação suicida.

Depois de quatro tentativas de autoextermínio, descobri que se me ferisse poderia segurar a barra por mais um tempinho. Só que esse tempo é muito curto, e quando passa sobra a vergonha de mostrar os braços e a paranoia de que está todo mundo olhando e julgando. E deve estar mesmo. As pessoas têm uma curiosidade mórbida por esse tipo de coisa.

Na crise mais grave de mania, larguei um bom emprego que eu tinha desde os 15 anos. Estava então com 18. Fiz um acordo, recebi a rescisão (uma boa grana) e passei três meses na praia gastando tudo no melhor estilo sexo, drogas e rock’n’roll – mais drogas e rock’n’roll. Foi incrível! Eu jamais imaginaria, na época, que aquilo era uma doença. Tive a primeira crise de depressão na sequência. Estava desempregada e endividada.

Até ser diagnosticada corretamente cinco anos depois, passei por tratamentos para depressão que só pioraram tudo.

Achei que não conseguiria terminar a faculdade. Achei que não ia nem entrar pra ser honesta. Como foi que eu emburrecera? Não apreendia conteúdos, não lia os textos e, às vezes, nem conseguia ficar na aula. Meu histórico é cheio de FF (reprovação por falta de frequência). Concluí em sete anos o curso de quatro anos.

Sabe o que é pior? Não era a profissão que queria, mas minha cabeça doente achou que era uma boa ideia trocar o sonho de infância da Medicina por Jornalismo. Isso me causa muitos problemas ainda hoje.

Começo coisas e não termino. Deixo de começar outras porque tenho medo de não terminar ou de não ser capaz. Mas também tenho ideias grandiosas e estapafúrdias, às vezes muitas ao mesmo tempo. Não termino nada, é claro. Faço coisas por impulso.

Mas…

Estou focando nos sintomas aqui, então não se assuste. Por mais desolador que pareça, hoje tenho uma vida razoavelmente normal. Algumas coisas até viraram histórias engraçadas na boca dos meus amigos. Acho ótimo! (Bom, isso porque eles têm noção do que podem escolher para contar.)

O TAB talvez seja a doença psiquiátrica mais tratável. Nunca fui negacionista quanto à doença (nem quanto a nada). Fiquei aliviada quando recebi o diagnóstico correto e comecei a tomar lítio. Suportei os efeitos colaterais dos remédios – visão turva, tremor, náusea, diarreia… – porque sabia que o que vinha depois era melhor.

Já fazia terapia na época. Foi minha psicóloga quem primeiro percebeu que o que eu tinha era mais que depressão e me encaminhou para o médico.

Quando mudei de estado, fiquei um tempo sem tratamento e tive que suportar o luto pela perda da minha ex-psi (não havia terapia on-line na época). Foi trágico. Por fim, encontrei a psicóloga com quem estou até hoje. Ela trabalha com terapia cognitivo-comportamental. Apesar da minha paixão pela psicanálise, essa é a indicada para transtorno bipolar. Com ela, a psi, aprendi a dar um passo de cada vez, a me observar e identificar gatilhos, a prever as crises e me antecipar a elas.

Uma das coisas que faço e funciona são listas de tudo que tenho a fazer. Por falar nisso, comecei a anotar tudo que gasto, cada centavo. Depois marco com um “x” no que é fútil. Reduzi a fatura do cartão em mais de mil reais.

Nos últimos anos, voltei a escrever, e estou escrevendo um livro. Não sei quando vou terminar, mas vou. Quando me deparo com um gatilho, paro, dou um tempo, escrevo outra coisa e volto quando me sinto pronta. Tenho dois contos publicados em antologias e está saindo um terceiro.

Recentemente, comecei uma segunda graduação. Se tenho medo de não terminar? Com certeza! Mas estou tentando mesmo assim e me acostumando com a ideia de que se eu parar, tudo bem. Pelo menos aprendi uma porrada de leis e resolvi um homicídio (no laboratório virtual).

Continuo levando o celular para a cama, mas como lanterna. Tenho sempre um livro (de papel) ao lado da cama. Adormeço em meia hora no máximo. Atualmente, estou lendo “Vítima”, de Gary Kinder. É sobre as famílias envolvidas nos assassinatos… bom, voltando… (eu tento não mudar de assunto do nada, mas às vezes rola, desculpe).

Participei de grupos de apoio, assisti a palestras num dos lugares referência em transtorno bipolar, onde também participei de uma pesquisa duplo-cego. E, principalmente, continuei estudando.

Transformei meu desespero num blog, que cresceu e hoje tem colaboradores e uma sócia. Não sou influencer nem pessoa famosa
, e está tudo bem (confesso que já criei umas fanfics quando estava alterada pela mania, que vergonha…). Tenho seguidores muito especiais, e só de vê-los lendo meus textos, se identificando, compartilhando, me apoiando, fico imensamente feliz e grata. É o que me incentiva e me faz continuar.

Este texto já está gigante! (Se você chegou até aqui, parabéns e obrigada!) Podemos e vamos falar mais sobre mecanismos de enfrentamento.

Por ora, o que quero dizer é que você não é o transtorno, você tem o transtorno. Como qualquer outra doença sem cura, vai ter que se tratar até o fim da vida e vai ter sintomas.

Você não tem um defeito, não está quebrado, tampouco é culpado. Eu sei que perdemos muita coisa no caminho, magoamos pessoas, fazemos besteiras. Isso dói muito. Mas tente separar o que é seu do que é doença. (Só não vale usar o transtorno para justificar falha de caráter.)

A maioria das pessoas não vai entender. Escolha as que você quer que façam parte da sua rede de apoio e conte como se sente. Indique materiais para elas lerem ou até indique um grupo de apoio de amigos e familiares.

Tenho vergonha de muitas coisas que contei aqui – e não é nem um centésimo! Mas se for para você saber que não está sozinha ou sozinho, vale a pena a exposição. E a pessoa que está ao seu lado também pode ler e entender um pouco melhor como você se sente.

A doença não nos impede de ter uma vida normal. O estigma, sim.




2 comentários:

  1. Que bom que resolveu um homicídio no laboratório!!! Orgulho de você, sempre! Texto lindo!

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    1. Obrigada, Nega! Você tem um papel muito importante nessa trajetória. E obrigada por não ter desistido de mim! <3

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