sábado, 30 de março de 2024

POR QSPMSP ::
O dia 30 de março é uma homenagem à primeira pessoa a receber diagnóstico póstumo de transtorno bipolar, Vincent van Gogh, nascido nesta data.

Imagem: A noite estrelada, tela de Vincent van Gogh (Arles, 1888)

 

Em 1852, nascia em Zundert, uma cidade rural dos Países Baixos, Vincent Willem van Gogh. Apesar de ter nascido sem vida, teve um funeral, e seu nome foi gravado na lápide de um túmulo ao lado da igreja onde o pai do natimorto era pastor.

Um ano depois, em 30 de março de 1853, a cidade de Zundert recebia seu segundo Vincent Willem van Gogh. Este sobreviveu e foi o filho mais velho na família Carbentus-van Gogh. O quanto ler seu próprio nome num túmulo dia após dia influenciou na sua saúde mental, só podemos especular, mas opino que teve algum impacto.

Theo, o terceiro filho, tornou-se inseparável do irmão até na morte – estão enterrados lado a lado em Auvers-sur-Oise, na França. Por meio da correspondência entre eles, tomamos contato com o que há de mais profundo na mente do pintor. Sua capacidade de autoanálise é impressionante.

Vincent foi um menino solitário. Dos cinco irmãos, somente Theo o acompanhava em suas incursões pelos campos. Vincent era curioso, inteligente, excêntrico: são alguns dos adjetivos dados por seus biógrafos.

Era um leitor obstinado, lia de tudo. Amava Charles Dickens, Hans Christian Andersen, Vitor Hugo, Balzac e Shakespeare. Seu conto preferido era de Andersen, “A história de uma mãe”. Para quem conhece este conto, é difícil não o associar à história do menino Vincent.

Foi chamado de “vagabundo sem futuro” por sua mãe, Anna Carbentus. Este é um capítulo à parte. Anna desprezava o filho e jogou fora todos os trabalhos que ele deixava em casa, inclusive desenhos da sua infância, obras que nunca teremos a chance de ver.

Começou a ter contato direto com arte aos dezesseis anos, quando um tio conseguiu um emprego para ele na Casa Goupil, uma renomada galeria, em Haia. Dizem que era um dos melhores empregados que a casa havia tido.

Vincent era compulsivo, pintava de maneira frenética. Estudava muito, analisava outros artistas e obras, fazia estudos de cor, testava. Em apenas 37 anos de vida, produziu mais de 2 mil obras de arte entre pinturas e desenhos. Devia ser bem irritante, teimoso e obstinado. Colocava defeito em tudo. Mas era generoso e amoroso na mesma medida. E também tinha longos períodos de depressão (melancolia).

O famosos caso da orelha ou o surto de um “pobre desgraçado”
No dia 23 de dezembro de 1888, percebendo sua vida miserável e convencido de que havia arruinado a vida de Theo e de outros, olhou para o espelho e, em surto psicótico, viu um estranho, um “pobre desgraçado” em suas palavras. Precisava puni-lo.

Com uma navalha, cortou a orelha até a mandíbula. Minutos depois, talvez segundos, teve um lapso de lucidez e tentou estancar o sangue sem entender o que estava acontecendo. Mas sua mente estava perturbada demais para uma lucidez completa. Pegou os pedaços de carne e cartilagem, enrolou em um jornal e deixou com o vigia de um bordel onde supôs estar o pintor Paul Gauguin.

Vincent e Gauguin haviam brigado. O último estava deixando a casa em que morava com Vincent, abandonando-o. Infelizmente a versão que prevalece é que o corte da orelha foi uma excentricidade, uma afronta a Gauguin. A verdade é que o conflito com Gauguin já vinha se arrastando e incendiando a cabeça de Vincent, e a briga foi só um gatilho. E a relação conturbada dos dois foi só um elemento a mais que fez explodir uma mente que já estava doente.

O episódio o levou à sua primeira internação, em Arles, onde ficou até janeiro de 1889. A segunda, a seu próprio pedido, foi no Asilo Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy, de maio de 1889 a maio de 1890. Foi neste lugar que ele pintou “A noite estrelada”, uma de suas telas mais famosas. Ao sair da segunda internação, instalou-se na comuna francesa de Auvers-sur-Oise, onde passou seus últimos meses de vida.


Em 27 de julho de 1890, Vincent Willem van Gogh morreu por um ferimento causado por tiro de revólver. Morreu às vésperas da fama. Na época, a causa da morte foi dada como suicídio, versão que se consolidou e é a mais aceita até os dias de hoje. No entanto, os argumentos forenses para essa versão carecem de evidências.

Em 2011, Steven Naifeh e Gregory White Smith, biógrafos do pintor, reconstituíram seu último dia de vida e apresentaram uma versão bem fundamentada que sugere homicídio ou acidente. Não se trata de negar o fato de que Vincent van Gogh poderia ter tirado a própria vida. Trata-se de restabelecer a verdade para entender melhor a mente do “gênio louco”, zombado e execrado em vida e famoso e milionário depois de morto.

A versão de Naifeh e Smith no mínimo levanta uma dúvida. O caminho mais fácil era culpar o morto por sua própria morte. Afinal, ele era o louco, excêntrico, esquisito, e os outros envolvidos, meninos ricos parisienses passando férias de verão em Auvers.

O diagnóstico de transtorno bipolar é uma teoria elaborada por especialistas modernos com base na análise retrospectiva de sintomas e comportamentos ao longo da vida de Vincent, descritos em suas cartas e relatos históricos. Eles argumentam que os altos e baixos extremos, a criatividade intensa durante os períodos maníacos, seguidos por períodos de depressão profunda, são consistentes com os padrões da doença. Porém é importante dizer que esse diagnóstico não é totalmente fechado, pois foi feito com base em evidências indiretas.

Nada disso altera o fato de que Vincent van Gogh revolucionou a pintura com suas cores vibrantes e pinceladas grossas, com seus retratos e suas releituras. Traçou uma linha divisória entre suas obras e o que veio antes. E mesmo assim não conseguiu se libertar da própria mente.


FONTES:
NAIFEH, Steven; SMITH, Gregory White. Van Gogh: a vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

GOGH, Vincent van. Cartas a Theo. Porto Alegre: L&PM, 1997.


:: Leia trechos das cartas de Vincent van Gogh a Theo van Gogh

Sou um homem de paixões, capaz de, e sujeito a fazer coisas mais ou menos insensatas, das quais às vezes me arrependo mais ou menos.


Nem sempre sabemos dizer o que é que nos encerra, o que é que nos cerca, o que é que parece nos enterrar, mas no entanto sentimos não sei que barras, que grades, que muros.
Será tudo isto imaginação, fantasia? Não creio; e então nos perguntamos: meu Deus, será por muito tempo, será para sempre, será para a eternidade? Você sabe o que faz desaparecer a prisão. E toda afeição profunda, séria. Ser amigos, ser irmãos, amar, isto abre a porta da prisão por poder soberano, como um encanto muito poderoso. Mas aquele que não tem isto permanece na morte.
Mas onde renasce a simpatia, renasce a vida.
Além disso, às vezes a prisão se chama preconceito, mal-entendido, ignorância, falta disto ou daquilo, desconfiança, falsa vergonha.


O amor, com efeito, é algo positivo, algo forte, algo a tal ponto real que é tão impossível para alguém que ama arrancar fora este sentimento quanto atentar contra a própria vida. Se você me responder: “Mas, no entanto, há homens que atentam contra a própria vida”, eu direi simplesmente: “Não penso ser um homem com tais inclinações”.


Acaso haverá vagabundos e vagabundos que sejam diferentes? Há quem seja vagabundo por preguiça e fraqueza de caráter, pela indignidade de sua própria natureza: você pode, se achar justo, me tomar por um destes.
Além deste, há um outro vagabundo, o vagabundo que é bom apesar de si, que intimamente é atormentado por um grande desejo de ação, que nada faz porque está impossibilitado de fazê-lo, porque está como que preso por alguma coisa, porque não tem o que lhe é necessário para ser produtivo, porque a fatalidade das circunstâncias o reduz a este ponto, um vagabundo assim nem sempre sabe por si próprio o que poderia fazer, mas, por instinto, sente: “No entanto, eu sirvo para algo, sinto em mim uma razão de ser, sei que poderia ser um homem completamente diferente. No que é que eu poderia ser útil, para o que poderia eu servir; existe algo dentro de mim, o que será então?”.
Este é um vagabundo completamente diferente; você pode, se achar justo, tomar-me por um destes.


Já fazem agora talvez cinco anos, não sei ao certo, que vivo mais ou menos sem lugar, errando aqui e ali. Agora vocês dizem: desde tal ou qual época você caiu, você se apagou, você não fez mais nada. Será que isto é totalmente verdade?


Podemos permanecer neste tempo de muda, podemos também deixá-lo como que renovados, mas de qualquer forma isso não se faz em público, é pouco divertido, e por isto convém eclipsar-se.


Sou um homem de paixões, capaz de, e sujeito a fazer coisas mais ou menos insensatas, das quais às vezes me arrependo mais ou menos.


Muitas vezes me ocorre falar ou agir um pouco depressa demais, quando seria melhor esperar com um pouco mais de paciência.


Não poderia eu servir e ser útil de alguma maneira? Como poderia saber mais e aprofundar este ou aquele tema? Como você vê, isto me atormenta continuamente. Além disto, sinto-me como um prisioneiro de meu tormento, excluído de participar nesta ou naquela obra, e tendo estas ou aquelas coisas necessárias fora de meu alcance. Por isto sentimo-nos melancólicos, e sentimos grandes vazios ali onde poderiam existir amizades e elevadas e sérias afeições, e sentimos um terrível desânimo corroendo nossa própria energia moral, e a fatalidade parece poder colocar obstáculos aos instintos de afeição, e uma maré de desgosto nos invade. E então dizemos: até quando, meu Deus?


Um belo dia em que as pessoas começarem a dizer que eu sei desenhar bem, mas não sei pintar, talvez eu apareça com um quadro quando menos esperaram. Mas enquanto me parecer que tenho de fazê-lo ou que me é proibido fazer outra coisa além do desenho, eu certamente não o farei.


Seja na figura, seja na paisagem, eu gostaria de exprimir não algo sentimentalmente melancólico, mas uma profunda dor. Em suma, quero chegar ao ponto em que digam de minha obra: este homem sente profundamente, e este homem sente delicadamente. Apesar da minha suposta grosseria, você me entende? Ou precisamente por causa dela.
O que é que sou aos olhos da maioria – uma nulidade ou um homem excêntrico ou desagradável –, alguém que não tem uma situação na sociedade ou que não a terá; enfim, pouco menos que nada.


Você sabe que eu sou inconstante no meu trabalho, e que este furor de pintar pomares não durará para sempre. Depois disso virão possivelmente as arenas. Depois eu tenho uma enormidade de coisas para desenhar, pois gostaria de fazer desenhos no gênero dos crepons japoneses. Não posso fazer nada além de bater no ferro enquanto ele ainda está quente.


Quanto a mim, o torpor justamente está me deixando, não sinto mais tanta necessidade de me distrair, sou menos atormentado pelas paixões, e posso trabalhar com mais calma; poderia ficar só sem me aborrecer. O resultado é que me sinto um pouco mais velho, mas não mais triste.


E talvez, no fundo, a doença venha um pouco disto, não me surpreenderia. Não mais nos revoltamos contra as coisas, e também não nos resignamos, ficamos doentes e isto nunca passará, e precisamente isto nós não conseguimos remediar. Não sei quem foi que chamou este estado de: estar atingido pela morte e pela imortalidade. A carga que arrastamos deve ser útil a pessoas que não conhecemos.


Devo prevenir-lhe que todo mundo vai achar que eu estou trabalhando rápido demais.
Não acredite nisto.
Não é a emoção, a sinceridade do sentimento da natureza, que nos impele? E se essas emoções são às vezes tão fortes que trabalhamos sem sentir que estamos trabalhando, quando às vezes os toques vêm numa sequência e relacionados entre si como as palavras de um discurso ou de uma carta, é preciso lembrar-se então que nem sempre foi assim, e que no futuro também haverá muitos dias pesados, sem inspiração.


Em certos momentos, quando a natureza fica tão bela quanto nesses dias, tenho uma lucidez terrível, e então não me reconheço mais e o quadro me vem como em sonho. Receio um pouco que isto tenha sua reação melancólica quando chegar o mau tempo, mas procurarei evitá-lo pelo estudo daquela questão de desenhar figuras de memória.

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