POR LU CANDIDO ::
Quando penso nos primeiros dias de abril de 1994, é como se tivesse sido em outra vida. Não foi uma figura de linguagem: é um sintoma. O resto é bobagem: só temos uma vida, esta que vivemos aqui e agora. Isso vai fazer sentido mais adiante.
Lembro-me bem daqueles dias por causa da morte repentina de Kurt Cobain aos 27 anos. No dia 5 de abril, completaram-se 25 anos desse evento triste. Se não me engano, ele só foi encontrado no dia 8. Eu tinha, então, 15 anos e fiquei realmente abalada. Era frustrante ver um dos meus ídolos morto, saber que eu nunca teria a chance de vê-lo ao vivo ou de escutar uma música nova sua.
Mas teve outra coisa. Passei vários dias triste. Ficava ouvindo Nevermind, que eu tinha em K7 (só por curiosidade, por mera coincidência macabra, minha música preferida desse álbum era “Lithium”). Chorava, tinha vontade de ver aquele cara, abraçá-lo e dizer “eu te entendo”. Talvez pudéssemos chorar um pouco e depois tudo ficaria bem. Acho que é o sentido genuíno daquilo que chamamos de empatia e compaixão e que hoje usamos de forma tão leviana muitas vezes.
Há 25 anos, não tínhamos internet. Comprávamos revistas mensais de rock, assistíamos à MTV na TV aberta, enviávamos cartas pelo correio e usávamos telefone fixo, normalmente o orelhão, ouvindo o barulho das fichas caindo. Essa era a velocidade da informação que recebíamos. Fui saber de detalhes da vida de Kurt Cobain e ter acesso à carta que deixara muito depois.
Apesar de gostar de ler sobre teorias da conspiração – são divertidas e estimulam a nossa criatividade –, não acredito que Kurt Cobain tenha sido assassinado. Por incrível que pareça, até existem argumentos plausíveis para essas teses. A questão é que os argumentos que indicam que foi suicídio são muito mais convincentes.
Eu só entendi o significado daquela carta depois de uma ou duas crises. O caso Kurt Cobain tem todos os elementos para compor um discurso que contemple o senso comum: muito jovem, ascensão rápida, fama, dinheiro, drogas, não soube lidar, morreu. É possível aprofundar esses temas sem sair da superfície. Mas não é tão simples.
Quando Kurt morreu, sua mãe falou numa entrevista: “eu pedi para ele ficar fora desse clube idiota.” Aquilo foi entendido como o “clube dos 27”, referente às estrelas do rock que morrem aos 27 anos. Na verdade, Wendy Fradenburg estava falando do clube de suicidas da família. Dois dos tios de Kurt e um tio-avô haviam se matado. Esses eram os casos extremos, mas a sua árvore genealógica estava repleta de doenças mentais.
Kurt foi uma criança feliz. Aparentemente, a virada começou depois dos nove anos, após a separação dos pais. Num primeiro momento, ficou com a mãe. Em seguida, foi morar com o pai. Teve uma relação conflituosa com a madrasta e novo irmãozinho. Então, foi morar com parentes e amigos da família. Depois, mais uma vez com a mãe, e ainda passou um tempo na rua até ir morar sozinho.
Aos 13, Kurt e uns amigos encontraram um garoto morto na
floresta, pendurado numa árvore com uma corda no pescoço. Na ocasião, ele teria perguntado à mãe: “Eu tenho o gene do suicídio?” Foi também aos 13 que começou a beber. Aos 14, disse a uma amiga na escola que seria um músico famoso, ganharia dinheiro, depois se mataria e teria seu “momento de glória como Jimmy Hendrix” (ele não sabia, na época, que Hendrix não havia cometido suicídio).
Segundo o biógrafo de Kurt, Charles R. Cross (“Mais pesado que o Céu – Uma Biografia de Kurt Cobain”, 2001), ele foi diagnosticado com transtorno de hiperatividade e déficit de atenção na infância e transtorno bipolar na vida adulta. Inclusive, embora a música não seja sobre transtorno bipolar, o nome de “Lithium” é em referência ao carbonato de lítio que Kurt tomava como regulador de humor.
Kurt queria fazer sucesso, mas não queria a fama. Na verdade, não a suportava. Lutou contra ela, mas parecia que quanto mais ele fazia para ser hostilizado, mais a fama ia ao seu encontro.
Este Kurt Cobain, o homem que carrega uma história desde 1967, da cidadezinha de Aberdeen – não o vocalista do Nirvana simplesmente –, chega em 1994 viciado em heroína, fracassando em suas tentativas de ficar limpo (o que só estava tentando fazer pela filha), com dores de estômago crônicas, profundamente deprimido, lutando contra um transtorno mental. Tudo isso com as luzes da fama todas ligadas na sua cara. Parece-me razoável dizer que tenha se suicidado.
Mesmo assim, eu já li e reli a carta de despedida muitas vezes, em diversos momentos e fases, em diferentes estados de humor. Exceto pelas linhas finais, que parecem ter sido escritas num momento diferente, não consigo ver uma carta suicida. E continuo achando que foi suicídio.
Leiam este trecho: “O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo como se eu estivesse me divertindo.” Bem, não foi isso que ele escreveu. Foi isto: “O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo como se eu estivesse me divertindo 100%.” Percebem a diferença? Há uma preocupação em marcar que ainda existe alguma coisa, um percentualzinho qualquer, por menor que seja.
Kurt continua no tempo presente: “Às vezes, eu sinto como se eu tivesse que bater o cartão de ponto antes de subir ao palco. Eu tentei tudo ao meu alcance para gostar disso (e eu tento, por Deus, acreditem em mim, eu tento, mas não é o suficiente). Eu gosto do fato que eu e nós atingimos e divertimos um monte de gente. Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor as coisas quando elas se vão. Sou muito sensível.” Depois de dizer “eu tentei”, ele reforça que continua tentando (“e eu tento”). E aponta para o futuro: “Preciso ficar um pouco dormente para ter de volta o entusiasmo que eu tinha quando criança.”
Eu poderia continuar e dissecar toda a carta, linha por linha. É um trabalho fascinante. Parecem detalhes bobos, mas acreditem, não são. Como ele, já escrevi inúmeras coisas desse tipo, sei o que estou dizendo. A gente coloca sentimentos e sensações em cada espaço, em cada ponto, em cada vírgula, em cada pronome. Escolhemos com cuidado cada palavra e torcemos para que alguém entenda, o que é completamente irracional, porque ninguém é obrigado a entender e o mais comum é que não entenda mesmo.
A carta inteira, na minha opinião, é um grito de dor, um pedido de socorro, uma busca por ajuda, por alguma coisa que coloque sentido na vida. Ele perdeu a paixão pelo que fazia e não aceitava fazer menos que o máximo. Ele tinha uma filha bebê e estava apavorado. Sentia que decepcionava as pessoas. Tinha ódio dos humanos, mas amava todas as pessoas. Sabia que coisas boas estavam acontecendo, mas não conseguia sentir e, então, se perguntava inutilmente: por quê??
É um estado paralisante. Suas convicções são postas à prova o tempo todo. Não existem memórias boas, elas simplesmente desaparecem. Você não consegue aproveitar nada de forma positiva, porque vai sempre, em qualquer mínimo detalhe, surgir culpa, frustração, problematizações. No meio disso tudo, é evidente que nenhum caminho para a frente pode ser sequer imaginado.
Você vira prisioneiro de você mesmo, e passa a ser torturado por sua mente em tempo integral. Isso dói, e dói muito. Você não quer morrer. Você só quer que a dor passe e que esta tortura acabe. Se você pudesse desaparecer por um tempo, ficar invisível, ir para outra galáxia, zerar a vida... mas não dá.
Acho que esse é o sentido da carta de Kurt Cobain.
Abaixo da assinatura, havia mais algumas frases que foram acrescentadas depois. Especulando, eu diria que estas sim compõem o bilhete suicida: “Frances e Courtney, estarei em seu altar. Por favor, vá em frente, Courtney, por Frances. Pela vida dela, que vai ser bem mais feliz sem mim. EU TE AMO, EU TE AMO!”
Hoje eu entendo por que eu fiquei tão triste na época. O tempo passou, me descolei desse episódio e, por outras razões, acabei virando uma ativista (acho que posso chamar assim) de saúde mental e prevenção ao suicídio.
Não podemos saber o que teria acontecido se alguém tivesse abraçado o Kurt e dito que tudo ficaria bem. O que sabemos, com certeza, é que é possível prevenir mortes como a dele. Na semana que se seguiu à sua morte, 68 jovens tiraram a própria vida. Talvez não tivesse sido assim se o caso não estivesse só nas páginas policiais e colunas sociais.
Não existe caminho mágico: é preciso falar sobre suicídio, combater tabus e preconceitos, conscientizar e informar. Isso nunca é fácil. Se você tiver alguém próximo que esteja em sofrimento profundo, que possa pensar em suicídio ou não, pegue a sua mão, dê um abraço, pergunte se quer conversar, apenas escute. Não julgue. Tente mostrar que tudo pode melhorar. Se mesmo assim acontecer, não se culpe jamais.
Se você está pensando em se matar ou tem ideações suicidas, você não está sozinho. Eu já estive aí. É um lugar horrível, está tudo escuro, não dá para enxergar a saída. Você não vê nenhum caminho, sequer uma parede para se apoiar. Mas a saída existe, vai por mim. A única coisa que eu posso garantir é que isso passa. Se você não desistir, tatear e conversar com alguém, isso vai passar. Vai ser difícil, muito difícil, mas vai passar e você vai sair mais forte do que nunca imaginou que pudesse ser.
Carta de Kurt Cobain encontrada em 8 de abril junto ao seu corpo. É considerada a sua carta de suicídio.
Boddah*
Falo como um simplório homem com experiência que obviamente preferia ser uma criança castrada e reclamona. Este bilhete deve ser bastante fácil de entender. Todas as advertências das aulas de Introdução ao Punk Rock ao longo dos anos, desde minha apresentação à, digamos, ética envolvida na independência e o acolhimento de sua comunidade, se provaram verdadeiras. Eu não tenho sentido a excitação de ouvir, bem como criar música, juntamente com a leitura e a escrita, faz muitos anos. Eu me sinto culpado por essas coisas além do que posso expressar em palavras.
Por exemplo, quando estamos atrás do palco e as luzes se apagam, e o ruído ensandecido da multidão começa, isso não me afeta do jeito que afetava Freddie Mercury, que parecia amar, se deliciar com o amor e adoração da multidão, que é algo que eu admiro e invejo totalmente. A verdade é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês. Simplesmente não é justo nem com vocês nem comigo. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo como se eu estivesse me divertindo 100%. Às vezes eu sinto como se eu tivesse que bater o cartão de ponto antes de subir ao palco. Eu tentei tudo ao meu alcance para gostar disso (e eu tento, por Deus, acreditem em mim, eu tento, mas não é o suficiente). Eu gosto do fato que eu e nós atingimos e divertimos um monte de gente. Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor as coisas quando elas se vão. Sou muito sensível. Preciso ficar um pouco dormente para ter de volta o entusiasmo que eu tinha quando criança.
Nas nossas últimas três turnês, eu tive um apreço muito maior por todas as pessoas que conheci pessoalmente e pelos fãs de nossa música, mas eu ainda não consigo superar a frustração, a culpa e a empatia que eu tenho por todos. Existem coisas boas dentro de todos nós. Eu acho que simplesmente amo demais as pessoas e isso me deixa muito triste. O pequeno, sensível, insatisfeito, pisciano, Jesus triste. “E por que você simplesmente não aproveita?” Eu não sei.
Eu tenho uma deusa como esposa que transpira ambição e empatia e uma filha que me lembra demais como eu costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando cada pessoa que ela encontra porque todos são bons e ninguém a fará mal nenhum. E isso me apavora ao ponto de eu mal conseguir funcionar. Eu não posso suportar a ideia de Frances se tornar um triste, autodestrutivo, e mortal roqueiro, como eu virei.
Eu tive muito, muito mesmo, e eu sou grato por isso, mas desde os sete anos, passei a ter ódio de todos os humanos em geral. Apenas porque parece tão fácil para as pessoas que tem empatia se darem bem. Apenas porque eu amo e lamento demais pelas pessoas, eu acho.
Obrigado do fundo do meu ardente e nauseado estômago por suas cartas e preocupação nestes últimos anos. Eu sou um bebê errático e triste! Eu não tenho mais a paixão, e por isso lembre-se, é melhor queimar de vez do que se apagar aos poucos**.
Paz, amor, empatia.
Kurt Cobain
Frances e Courtney, estarei em seu altar. Por favor, vá em frente, Courtney, por Frances. Pela vida dela, que vai ser bem mais feliz sem mim. EU TE AMO, EU TE AMO!
[Este trecho abaixo da assinatura foi acrescentado após a primeira parte, com caneta diferente.]
* Boddah era um amigo imaginário que Kurt teve na infância.
** Aqui, Kurt cita um verso da música "Hey hey, my my", de Neil Young.
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