POR LU CANDIDO ::
Outro dia, estava numa roda de amigos e, como normalmente acontece, surgiu o assunto relacionamentos. Então, uma pessoa que, assim como eu, é portadora de transtorno bipolar, levantou uma questão: ele disse que quando conhece alguém e começa a se relacionar nunca sabe se tem que contar que tem TB, quando contar, como contar.
Acho que isso passa pela cabeça de todos nós. Pelo menos comigo também é assim. Tem fundamento. Se quiserem nos perguntar, todos temos histórias que explicam nosso receio. Não é exatamente o caso da que vou contar agora.
Estava saindo com um cara fazia uns meses. Estávamos naquele estágio do relacionamento que é um quase namoro, só não tínhamos colocado um nome ainda. Não lembro exatamente por que, mas achei que tinha de contar. Antes, porém, precisava falar sobre outro assunto:
– Olha, uma pessoa do meu passado está voltando para São Paulo. Só nos falamos por e-mail por enquanto, mas provavelmente vamos nos ver e conversar quando ele chegar.
Depois de alguns segundos de silêncio, ele disse que entendia. Disse que achou legal eu ter falado, que eu estava supercerta, que teria feito o mesmo etc. e mudamos de assunto. Não lembro qual foi a deixa, em determinado momento, eu falei:
– Eu tenho transtorno bipolar.
Novo silêncio. Após uma eternidade de alguns segundos, eu já me arrependendo de ter contado, com vontade de sair correndo, ele falou meio bravo:
– Eu sabia!
Fiquei realmente abalada, porque estava numa fase muito estável. Sempre fui muito disciplinada com meu tratamento, não tive nenhum sinal de crise durante o tempo em que estávamos juntos. É óbvio que me senti péssima. Na hora, imaginei que fosse algo muito explícito e que, decerto, todas as pessoas me olhassem e percebessem que eu tinha um transtorno.
– É tão evidente assim? – falei com a cabeça baixa.
– Eu sabia, você estava diferente! Só podia ter outra pessoa!
Se tem algum momento em que aquele estereótipo de bipolar passou perto de mim foi esse. Em instantes eu passei de bem para péssima, e de péssima para furiosa.
– Eu acabei de dizer que eu tenho transtorno bipolar e você está preocupado com uma pessoa que talvez eu encontre? É sério?!
Ele, então, baixou o tom e falou como quem diz ops:
– Você está bem?
Queria dizer para vocês que eu meti a mão na cara dele, mas não fiz isso. E assim, mais um relacionamento chegou ao fim.
Esse é um tema bastante delicado. Nós nos colocamos quase como uma obrigação divulgar ao outro que temos um transtorno. Por quê? A resposta é bem simples: porque somos estigmatizados.
Talvez essa falsa obrigação diga mais sobre nós mesmos do que sobre o outro. Pisamos em ovos quando o tema é relacionamento. Como qualquer ser humano normal, não queremos ser rejeitados. Porém é muito difícil medir a aceitação do outro, principalmente quando o preconceito é um fato concreto em nossas vidas.
A história que contei não prova que o transtorno bipolar não teve importância para o outro. Apenas mostra que, naquele momento, outro preconceito igualmente abominável se impôs. Foi uma situação atípica em que eu ofereci uma opção, e a escolha dele foi pelo machismo.
Revela, também, o modo irracional como eu estava lidando com a situação. Primeiro, me senti obrigada a revelar que tinha uma doença como se tivesse cometido um crime. Depois, fiquei apreensiva, esperando pela reação do outro e imaginando um julgamento que não havia se revelado. Ou, quem sabe, havia: seria o meu próprio julgamento a meu respeito? Talvez. O dele, eu nunca vou saber.
Os próprios pacientes temos uma imagem distorcida de nós mesmos, é um sintoma da doença. Muitas vezes, agimos como se o transtorno estivesse estampado em nossos rostos, não contestamos os rótulos que nos dão.
Ficamos tensos, sentimos culpa, não aproveitamos os momentos como deveríamos. Parece que estamos traindo o outro, escondendo algo crucial, o que é ridículo. Eu mesma já parei de sair com um cara porque chegou num ponto em que eu não conseguia mais esconder a medicação, que eu tomo três vezes ao dia. Então, eu preferi ser babaca e deixei que acabasse. Não me orgulho disso.
Em hipótese nenhuma isso é nossa culpa. Embora saibamos que o melhor seria quebrar essas barreiras, é muito difícil aplicar isso na prática. Como eu disse, é um sintoma e é o reflexo do preconceito que existe fora, na sociedade.
Não somos o transtorno, e o transtorno não é a gente. É uma parte – importante – de um ser muito mais complexo, que tem uma história, uma vivência, uma personalidade única. É isso que devemos apresentar ao outro. Se a história se desenrolar, o transtorno deve surgir nesse contexto.
Porque é como eu disse na seção “entenda” deste blog: Estamos por aí e só queremos viver como qualquer um. Nem mais nem menos.
Fotos: do filme O lado bom da vida
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