segunda-feira, 28 de abril de 2025

POR WALTER M. :: 

“Como você se sente?”

Naquele momento, por mais que a revelação do diagnóstico para o Transtorno do Espectro Autista (TEA) não fosse exatamente inesperada, a pergunta da psicóloga foi seguida por um longo silêncio.

Foto: Apostolos Vamvouras

Um filme passou pela minha cabeça. Da infância, sendo chamado de “pancado” pelo meu pai; à noite em que, já adolescente, fazia cortes no braço e via o sangue escorrer tentando, naquilo, encontrar algum tipo de alívio. Até a vida adulta e o permanente sentimento de incompatibilidade com todos os seus aspectos. Todos.

Só consegui conter o soluço estalando na garganta, disfarcei a lágrima que escapava do olho direito, respirei fundo e respondi, tentando fingir um tom blasé: “É, faz sentido”.

A ideia de me submeter ao teste me rondava há muitos anos. Mas não me parecia fazer muito sentido, talvez, se tanto, trazer algum alívio a um recorrente sentimento de culpa carregado ao longo de décadas. É um efeito relatado por muitas pessoas que recebem esse tipo de diagnóstico, mas para mim não fazia muito sentido, principalmente a essa altura da vida.

Foi numa conversa casual com uma amiga psicóloga que ela disse que há tratamento para esse tipo de condição. “Então tem conserto?”, perguntei espantado. Sim, eu sei, não é politicamente correto esse termo, mas na minha cabeça era isso: vim com defeito de fabricação e agora, talvez, pudesse ser “consertado”. Essa perspectiva mudou minha opinião e passei a juntar moedas para um diagnóstico que não é barato.

Algo como dois ou três anos depois desse diálogo, via-me, pela primeira vez na vida, diante de uma psicóloga numa sessão clínica. Ao ser questionado sobre a razão de buscar aquele tipo de teste, respondi que não via mais sentido em continuar vivendo esse tipo de vida.

As sessões foram extenuantes. Discorrer sobre suas disfuncionalidades, rememorar fatos e frustrações de uma vida inteira, enfim, não é a coisa mais prazerosa do mundo. Em determinado momento, sentindo o que interpretei ser uma profunda apatia da profissional que me avaliava, pensei em abandonar. Acho que só não o fiz por já ter pago.

Além de uma entrevista, parte dos testes compreendem longos questionários (alguns escritos, para serem preenchidos fora da sessão, e outros verbais, durante as sessões), em que são colocadas situações e você deve responder numa escala de gradação. Por exemplo: “Tenho facilidade de chegar numa roda de pessoas e estabelecer uma interação social” – as respostas variam entre “sempre”, “quase sempre”, “às vezes”, “quase nunca” e “nunca”. Essa foi fácil, mas outras me pareceram mais dúbias.

E o pior foi quando ela disse que uma etapa fundamental do processo seria uma “entrevista” com um familiar que, necessariamente, tivesse acompanhado meu desenvolvimento na infância e adolescência. Critério que só se encaixaria na minha mãe. O que não seria tão simples: não a avisei que estava fazendo essa bateria de testes para TEA. Primeiro que não queria, de forma nenhuma, que pesasse sobre ela algum tipo de culpa. Uma mulher idosa maltratada pela vida, sob o peso de cuidar de um marido com câncer, não mereceria isso. Então usei como desculpa que estava fazendo uma avaliação psicológica de rotina para tratar minha insônia crônica.

Essa sessão em particular, com a psicóloga, minha mãe, e eu, foi estranhamente reveladora. Soube de coisas que não fazia ideia, como a diferença entre meu comportamento e a de meu irmão. Os dois absolutamente diferentes. Eu, retraído, introspectivo e não reativo, mesmo quando contrariado. Ela relatou de um episódio em que cheguei com o boletim com uma nota 7 em uma das disciplinas, quando tirava só 10 e, no máximo, um 9. Fui repreendido e me limitei a me esconder num canto e chorar baixinho.

De resto, penso que, no afã de mãe de me proteger, ela praticamente gabaritou todos os critérios para o diagnóstico: retraído, poucos ou nenhum amigo, sem vida social na adolescência, passada basicamente trancado no quarto. E sem qualquer episódio de contrariedade numa etapa da vida em que é esperado brigas e discussões com os pais.

Nos dias que antecederam a entrega do laudo, meu sentimento era dúbio, no mínimo. Ser considerado neurotípico me faria sentir não tão estranho. Por outro lado, daria a impressão de que sou isso mesmo, e vida que segue, não há o que fazer.

Quando houve a sessão de devolutiva, o famoso chá de revelação autista, a psicóloga me perguntou se havia alguma dúvida. Perguntei-lhe se, em nossa interação (cuja observação pressupus fazer parte da avaliação), havia algum comportamento que “contou pontos” para o diagnóstico. “Sim, você não muda sua expressão facial, independente do assunto”, respondeu. O que também me surpreendeu, pois, embora soubesse não ser tão expressivo quanto um Anthony Hopkins, não pensava que fosse assim. O que explica o fato de as pessoas me considerarem tão “sério”, quando, na verdade, me acho uma pessoa bem-humorada (cometo algumas gafes até… muitas na verdade).

Bom, voltando ao início. Com o laudo em mãos, como me sentia? Uma ex-namorada com quem eu, há alguns anos, havia comentado sobre a intenção de fazer o diagnóstico, disse que isso só servia para aliviar a consciência sobre as consequências dos atos das pessoas. Mas senti o exato contrário. Pensei em todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, magoei no decorrer da vida. Pensei até em escrever uma carta a cada uma delas. Talvez até o faça. Algum dia.

No momento, penso em me apegar a um trecho do laudo, que se define como uma “ponte”, entre o que “foi vivido até agora, e a possibilidade de viver com mais clareza, respeito aos próprios limites e acesso às próprias potências”.

Não consigo, porém, não pensar no tempo perdido. Décadas que, talvez, com um tratamento adequado, pudesse ter realizado tantas coisas que, dentro dos meus limites, talvez fosse possível. Mas não quero parecer vitimista. Ao contrário, tenho agora a possibilidade de ser “consertado”, o que não deixa de ser um privilégio negado a gerações e a tanta gente que, ainda hoje, é considerada disfuncional, esquisita, preguiçosa, relapsa, insensível, como um mero traço de personalidade.

Quero não me sentir um corpo estranho, como numa canção de uma banda que diz “o mundo me engole/ e me cospe porque/ sabe que eu não devo fazer bem”.

Quero conseguir expressar minhas emoções, desejos e frustrações. Quero não mais machucar ninguém por não conseguir fazê-lo.

Pode parecer capacitismo, afinal, autismo é uma condição genética, incurável, portanto, pois não há o que se curar. Sou o que sou. Mas penso, ou melhor, quero crer, que, mudando, possa, contraditoriamente, me tornar mais eu.




0 comentários:

Postar um comentário