POR WALTER M. ::
“Como você se sente?”
Naquele momento, por mais que a revelação do diagnóstico para o Transtorno do
Espectro Autista (TEA) não fosse exatamente inesperada, a pergunta da psicóloga
foi seguida por um longo silêncio.
Foto: Apostolos Vamvouras
Um filme passou pela minha cabeça. Da infância, sendo chamado de “pancado” pelo
meu pai; à noite em que, já adolescente, fazia cortes no braço e via o sangue
escorrer tentando, naquilo, encontrar algum tipo de alívio. Até a vida adulta e
o permanente sentimento de incompatibilidade com todos os seus aspectos. Todos.
Só consegui conter o soluço estalando na garganta, disfarcei a lágrima que
escapava do olho direito, respirei fundo e respondi, tentando fingir um tom
blasé: “É, faz sentido”.
A ideia de me submeter ao teste me rondava há muitos anos. Mas não me parecia
fazer muito sentido, talvez, se tanto, trazer algum alívio a um recorrente
sentimento de culpa carregado ao longo de décadas. É um efeito relatado por
muitas pessoas que recebem esse tipo de diagnóstico, mas para mim não fazia
muito sentido, principalmente a essa altura da vida.
Foi numa conversa casual com uma amiga psicóloga que ela disse que há
tratamento para esse tipo de condição. “Então tem conserto?”, perguntei
espantado. Sim, eu sei, não é politicamente correto esse termo, mas na minha
cabeça era isso: vim com defeito de fabricação e agora, talvez, pudesse ser “consertado”.
Essa perspectiva mudou minha opinião e passei a juntar moedas para um
diagnóstico que não é barato.
Algo como dois ou três anos depois desse diálogo, via-me, pela primeira vez na
vida, diante de uma psicóloga numa sessão clínica. Ao ser questionado sobre a
razão de buscar aquele tipo de teste, respondi que não via mais sentido em
continuar vivendo esse tipo de vida.
As sessões foram extenuantes. Discorrer sobre suas disfuncionalidades,
rememorar fatos e frustrações de uma vida inteira, enfim, não é a coisa mais
prazerosa do mundo. Em determinado momento, sentindo o que interpretei ser uma
profunda apatia da profissional que me avaliava, pensei em abandonar. Acho que
só não o fiz por já ter pago.
Além de uma entrevista, parte dos testes compreendem longos questionários
(alguns escritos, para serem preenchidos fora da sessão, e outros verbais,
durante as sessões), em que são colocadas situações e você deve responder numa
escala de gradação. Por exemplo: “Tenho facilidade de chegar numa roda de
pessoas e estabelecer uma interação social” – as respostas variam entre “sempre”,
“quase sempre”, “às vezes”, “quase nunca” e “nunca”. Essa foi fácil, mas outras
me pareceram mais dúbias.
E o pior foi quando ela disse que uma etapa fundamental do processo seria uma “entrevista”
com um familiar que, necessariamente, tivesse acompanhado meu desenvolvimento
na infância e adolescência. Critério que só se encaixaria na minha mãe. O que
não seria tão simples: não a avisei que estava fazendo essa bateria de testes
para TEA. Primeiro que não queria, de forma nenhuma, que pesasse sobre ela
algum tipo de culpa. Uma mulher idosa maltratada pela vida, sob o peso de
cuidar de um marido com câncer, não mereceria isso. Então usei como desculpa
que estava fazendo uma avaliação psicológica de rotina para tratar minha insônia
crônica.
Essa sessão em particular, com a psicóloga, minha mãe, e eu, foi estranhamente
reveladora. Soube de coisas que não fazia ideia, como a diferença entre meu
comportamento e a de meu irmão. Os dois absolutamente diferentes. Eu, retraído,
introspectivo e não reativo, mesmo quando contrariado. Ela relatou de um
episódio em que cheguei com o boletim com uma nota 7 em uma das disciplinas,
quando tirava só 10 e, no máximo, um 9. Fui repreendido e me limitei a me
esconder num canto e chorar baixinho.
De resto, penso que, no afã de mãe de me proteger, ela praticamente gabaritou
todos os critérios para o diagnóstico: retraído, poucos ou nenhum amigo, sem
vida social na adolescência, passada basicamente trancado no quarto. E sem
qualquer episódio de contrariedade numa etapa da vida em que é esperado brigas
e discussões com os pais.
Nos dias que antecederam a entrega do laudo, meu sentimento era dúbio, no
mínimo. Ser considerado neurotípico me faria sentir não tão estranho. Por outro
lado, daria a impressão de que sou isso mesmo, e vida que segue, não há o que
fazer.
Quando houve a sessão de devolutiva, o famoso chá de revelação autista, a
psicóloga me perguntou se havia alguma dúvida. Perguntei-lhe se, em nossa
interação (cuja observação pressupus fazer parte da avaliação), havia algum
comportamento que “contou pontos” para o diagnóstico. “Sim, você não muda sua
expressão facial, independente do assunto”, respondeu. O que também me
surpreendeu, pois, embora soubesse não ser tão expressivo quanto um Anthony
Hopkins, não pensava que fosse assim. O que explica o fato de as pessoas me
considerarem tão “sério”, quando, na verdade, me acho uma pessoa bem-humorada
(cometo algumas gafes até… muitas na verdade).
Bom, voltando ao início. Com o laudo em mãos, como me sentia? Uma ex-namorada com
quem eu, há alguns anos, havia comentado sobre a intenção de fazer o
diagnóstico, disse que isso só servia para aliviar a consciência sobre as
consequências dos atos das pessoas. Mas senti o exato contrário. Pensei em
todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, magoei no decorrer da vida.
Pensei até em escrever uma carta a cada uma delas. Talvez até o faça. Algum
dia.
No momento, penso em me apegar a um trecho do laudo, que se define como uma “ponte”,
entre o que “foi vivido até agora, e a possibilidade de viver com mais clareza,
respeito aos próprios limites e acesso às próprias potências”.
Não consigo, porém, não pensar no tempo perdido. Décadas que, talvez, com um
tratamento adequado, pudesse ter realizado tantas coisas que, dentro dos meus
limites, talvez fosse possível. Mas não quero parecer vitimista. Ao contrário,
tenho agora a possibilidade de ser “consertado”, o que não deixa de ser um
privilégio negado a gerações e a tanta gente que, ainda hoje, é considerada
disfuncional, esquisita, preguiçosa, relapsa, insensível, como um mero traço de
personalidade.
Quero não me sentir um corpo estranho, como numa canção de uma banda que diz “o
mundo me engole/ e me cospe porque/ sabe que eu não devo fazer bem”.
Quero conseguir expressar minhas emoções, desejos e frustrações. Quero não mais
machucar ninguém por não conseguir fazê-lo.
Pode parecer capacitismo, afinal, autismo é uma condição genética, incurável,
portanto, pois não há o que se curar. Sou o que sou. Mas penso, ou melhor,
quero crer, que, mudando, possa, contraditoriamente, me tornar mais eu.
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